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2 de janeiro de 2011

Silêncio



"Eu te revelarei o medo num punhado de pó”
T.S. ELIOT

houve por bem meu bem a explosão
propor fissão nuclear
deste meu coração
que não teve Paz em tempo de se entregar

há calma absoluta contra ela própria
no meio do jardim medular que ninguém escuta
o medo lar de calcária cópia
de apenas pedra e pó
e mito que medra a alma em mim
ou ova preta de estatuária que olho algum usa
na serpentária eterna festa de dó e granito
que hoje é esta floresta de Medusa moderna

clara luz que investe perpendicular
sobre a zebrada hora do amanhecer
e a fotografia quebrada que com pus
se arvora ao renascer no Leste o luar do dia

é o solene afã
ao redor das crateras famintas
tocando a sirene vã das feras vis extintas
ou o pior
e então mais profundo que se creu em Satã
quando o Japão diz ao mundo
um eu sou você amanhã

e o Sol que cai no chão queima qual Vesúvio em Pompéia
exceto a quem se esconde constelado no breu da caverna
de onde se vê o dilúvio emoldurado de um mar que teima
numa hodierna visão em prol do vulcão de além-Cassiopéia

e a arca de sal navega na vaga lembrança
daquela Cultura que vivenciam os surdos
que por décadas leram atentos esses brancos de cada página
quais guias de um mundo sem volta ou revolta sequer
por sermos tão distantes e ensombrecidos por tudo o que fomos
nessas estradinhas sinuosas por entre escombros de floresta
a cercar aquele muito que poderíamos ter sido
antes mesmo de inventarmos deuses e germes
ou a bomba e o Domingo
que hoje é apenas de vento e pó de passagem
pelo que não se salvou
da demência em alerta que um dia vingou tão fria

agora toda a erva que resta se lança num grito
e como que de cima do Nada rola uma avalanche
que ninguém escuta dado o próprio não-Ser inaudito
a apedrejar esse espúrio sem qualquer revanche

pois o espírito da época é um deserto circular
cujo panorama faz baques secos que ninguém assusta
por entre colinas sem outro dono além do abandono
e ares de Olimpo a liberar a Morte repersonificada
que por um hermetismo condena este nosso Tempo
a rolar o Sol para sempre
por sua falta de mesura em relação ao Destino
o que a bela filha da Noite e inevitável mãe da Razão
sempre puniu

fontes cabais de um belo que prescreveu resignado
em seu Nada através do nado em águas termais
de um Caos afinal pacífico do nunca mais revisitado
uma vez que é resignificado cada um dos sinais

e a materialidade babilônica
um pouco aqui e ali dos pedaços
do ser humano e da ser humana desencarnados
após seu derradeiro veraneio de último casal
neste anti-Édem prático da devolução das espécies
em que se testemunha o invisível
do porvir que já era  

infinitas todas as palavras não ditas
tantas quantas seriam as lacunas entre elas
e por isso mesmo bem menos finitas
e um pouquinho belas

novecentos e noventa e nove
escrito com cal nas árvores mortas de qualquer floresta negra
ou mero novo olival
visto de cabeça para baixo enquanto se move
ou tragédia grega
em um grande contraste fenomenal
desde este recomeço que já se dá com pau
sob a imensa acidez que chove

e outro céu de um azul mais claro
traz à tona outro Sol mais azul ainda
justo quando o Sul parece algo raro
e até no horror à luz a vista é linda

e parece até magia se olhamos mal
pois as estrelas que vemos não estão nem ali para nós
e essas pedras-lápides de algum quadrante circular
sobre as quais sentamos quase por cem anos
foram trazidas para cá sabe-se lá de que forma
já que santuarizado está tudo o que não tem resposta
quando temos mais pressa do que o horizonte de eventos
em tecer pedras inéditas para o nojo das geometrias

algo houve aqui se se ouve espectros como enxame
vindo ora em curtas e ora em longas ondas de Rádio
como altas e baixas de maré burburinhando tsunami
a marulhar lembranças no olvido de ferrão ou gládio

vai sobre as águas de sal em demasia
o primeiro espírito inconsolável do que fomos
a pairar na contramão dos espaços outrora interditos
seguindo os passos do Vento que foi sopro um dia
rumo ao nevoeiro onívoro ao qual nos propomos
desde que envenenamos tudo com cogumelos bonitos

se tudo no mundo está perdido é aqui mesmo que nos achamos
pois não há curvas na paisagem por onde não se vai
e já que ninguém ainda voltou de onde ora estamos
nada nos resta além desse mundo só de ida do qual ninguém sai

este Limbo que nos coube assim elemental
é a um só tempo de betume e caiado
virgem e puro em sua senilidade
por ser aos outros tempos indiferente
por ele mesmo não passar de um Tempo serial
ao redor deste possível lar da Verdade
por já não ter aqui qualquer utilidade
pois é a estação terminal 
construída sobre um terreno acidentado
destruída pelo acidente

já passa da meia noite no relógio do Apocalipse
e o grandessíssimo Sol está agora em seu nadir
quando a Lua cheia tem cem minutos de eclipse
durante os quais tudo o que há deixa de existir

e o desconserto do restante é tão solitário e triste
como se poderia supor este relevo inútil
ex libris da mais angulosa Geografia
ou esta Terra vã e simbolicamente chã
sedenta por lágrimas
que não a tiveram como ter como destino
e isso não são meras estrofes e sim catástrofes
já que o mundo agora não era diferente disso
ou até de um cinzeiro cheio
na ignominiosa manhã que sucede a festa

onde tudo é de um espanto espontâneo e sem tamanho
qual ponte inacabada
entre o estranho e o mais estranho
sobre o imenso Nada

além de quando as infâncias todas se confundem
nessa praia de tombo alucinatória
nessoutro Mar da Tranquilidade
onde se encuba e exuma a História
de águas-vivas da imortalidade
em cujas infinitas senescências os fins se afundem

as mil revoadas de solos de guitarras quebradas
eletrificam o ar sem rumo Norte
enquanto tabuadas incontáveis são redecoradas
a multiplicar o estridor da Morte

através de colinas de tortura há o nunca e o nem sempre
a embolorar os dons mais frios que o Sul tinha
que já não há Verões que cheguem
para calcificar a carga de chaga ganha
pelo ainda evidente devir dos dias
que vão e vêm e não voltam sem então
por mais que a esfera sofra e as translações oscilem
com o atraso das menstruações
que a brisa quadrifurca indefinidamente
a partir do vórtice das cabeças ali no Abismo
onde já não cabe o sem Mistério
a viajar pelos sete sertões

fenômenos curvos cingem o cimo da altura
a tingir de branco a absoluta Queda
prefigurando a perpendicularidade pura
do novo leite que ao ser chovido aqui se azeda

árida pseudovida
máscara tão cara e pálida
rejeitada e devolvida
num pétreo malmequer de rosa
despalpebrada e retorcida
na boca da Noite que ninguém beija
porque é uma beldade leprosa
já que o arrependimento não mata mas aleija

eis a Terra enverrugada
livre de nós piolhos ela está nua
sim sim é a velha Gaia novamente ou se rapelada
e agora com pele de Lua

há só a vastidão do querer sem muros
e algum desejo que o ar ame farpado
mesmo sem torres ou falos duros
em seu ecossistema reinicializado 
com Amores a enfiar buracos nos furos
pois este mundo foi formatado

túneis de morfina
enferrujados pelo lazer
que no sono se confina
para mais não ter

a lenda gravidade
bem como a transparência e a radiação e os germes
e tudo mais de que se desconfia
desde a cólera até os pecadilhos mais inermes
existe e há em demasia
e foi assim que o meu mundo caiu na insanidade
desta Poesia tão adunca
que saiu de atividade
mas ainda tem certos efeitos sobre mim
sobretudo quando ninguém está olhando
porque quebramos o nosso espelho
aqui onde todos os dias ainda são nunca
e já o eram desde o primeiro fim
quando apertei o botão vermelho


27 de dezembro de 2010

Três meias noites

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Última Meia Noite - Comprei um livro hoje aqui em Buenos Aires, o segundo dos dois volumes da poesia completa do surrealista André Breton, bilíngue; e reparei que o texto da quarta capa trazia um erro tipográfico essencial, justo nas datas de nascimento e morte do autor: 1986-1966. É como se ele houvesse estado no mundo por vinte anos; morto durante vinte anos, antes de poder nascer. E quando é que se morre, realmente, nesses casos? Sinto-me então um pouco assim: nessa metamorfose imprescindível como rito de passagem para um vir-a-talvez-ser qualquer. Estamos vivendo os primeiros dias do último ano da primeira década do vigésimo primeiro século (possivelmente o último século), depois de Cristo (provavelmente o último Cristo) e, logo hoje, comentei comigo mesmo que queria morrer. Não estava triste, dentro embora dentro de mim eu mesmo me consolasse um pouco ao admitir uma não-tristeza tal. Contra-argumentava com meus motivos, para os outros um pouco estúpidos, por fim; mas estupidezes para mim suficientemente motivadoras, neste caso. Lógico porque absurdo. Neste dia eu mal comi, mais fumei. Andei pela cidade, por onde estava sem saber se voltaria para casa, em São Paulo, onde concluiria este texto quase um ano depois. Ensimesmado com tudo, perplexo com a nenhuma epifania das horas morrendo esmagadas sob meus passos desde o sempre de onde saí, misturo-me às anônimas ruas. Perdendo tempo, eu acho. Ou não acho... que sei eu? Fato é que não conseguia matar a mim mesmo, porque não fazia sentido algum, afinal de contas, já que eu tampouco conseguia deixar de morrer a mim mesmo, de uma forma ou de outra. Viver era isso, por volta da meia noite. E eu ali, indo por aí. As minhas unhas e cabelos a crescer muito lentamente, mas no entanto de forma tão obstinada que eu quase podia ouvi-los. Sim, meu amor... é inevitável que tudo isso saia de mim. Estou perdido. Mas cante aí seu tango assim mesmo, mesmo morto; cante mesmo que eu não saiba dançar, mesmo vivo. Eu estou aqui e ando. O que não se dá somente porque a flanar se vai ao longe. Não. Seria preciso fazê-lo por música, como é aqui, debaixo do meu chapéu. Passo após passo, nesse dois por quatro. Pois sim, Discepolín... el tango és un pensamiento triste que se baila.

Penúltima Meia Noite - Ouçam algo mais: sabem que isto não é tudo, não? A parte mais escabrosa eu deixei à parte. Está óbvio. Quem não imagina quantas vezes, andando pelas ruas, entre uma e outra meia noite, tenho de parar para, além de dormir e comer, mijar e cagar? É que mesmo assim cantado ou escrito, eu, em uma palavra, necessito-o. Sim, é monstruoso... mas escatológico jamais! Mas sei que prefeririam ser poupados dessa espécie de detalhes, com o que só anuo por tampouco eu ser dado a esse tipo de hiperrealismos. É que, tanto quanto mijar e cagar, preciso que me digam onde está minha poesia. Reconheço por aí quando encontro o que é, apesar de tudo, poético, como um canto de tango faminto, ou até como um faminto como eu que como cada canto em mim porque isso também pode ser um pouco poético, apesar de doloroso, algo inadvertidamente canibal porque literalmente onívoro, como a poesia. A fome, tal qual a meia noite, tudo olha e nada deixa de devorar. Alimenta-se de mim do mesmíssimo modo impossível como eu mesmo gostaria de poder somente sonhar ao invés de apenas dormir, ou de voar alto em lugar de caminhar, e de tão somente alucinar ao invés de ver e ouvir, ou ainda de cantar mil versos quando é preciso relesmente me comunicar, e, afinal, só comer poesia, ainda que depois de tudo fosse preciso mijar e cagar essa mesma poesia. Não é por necessidade de expressão, é a impressão que tenho de tudo. Como é possível escrever um texto perfeitamente lógico, claro e inteligível se mal consigo andar em linha reta? Como é possível viver uma vida absolutamente plausível, sem rasuras, quando sequer posso mal e mal me ater a fazer as letras caberem nas palavras que com todas as forças espremo entre estas linhas? Em suma, é preciso continuar vivendo para escrever, não parar de escrever para continuar a viver. Para mim o duro é durar... quero dizer, fazer duráveis as palavras quando é tão difícil estar aí. Mas chega de drama, providenciemos algo mais evidentemente literário, algo mais mágico ou fantástico quiçá, para que nos entretenhamos. Mais lêmures e menos lamúrias... que a madrugada ama drogada para que em seus leitores haja e aja a paciência.

Antepenúltima Meia Noite - Canto um tango com fome sob o olhar da meia noite, onde a idade do tempo sorri assídua e desdentada, com sinceridade até, mas não aplaude ou dá gorjeta. Ou porque por sorte é surda ou porque por isso não passo o chapéu. Por quê? Faz um frio negro atrás do futuro. Vêem-se invernos, viram verão. Não amoleço quem vem e volto duro. A cada vez que não os convido um ser da raça dos sóis penetra brincalhão nesta outra inauguração do meu dia. É apenas assim que me permito chorar, ou quando finjo. A manhã pianíssima sacode todas as flores por cima do muro do quartel general da minha paz de espírito, fenômeno tão imperdível que o fotografo para o meu portfólio, mesmo sem chegar a achar revelador. Afinal não é uma terra de oportunidades, mas de oportunismo. Um lance de degraus jamais engolirá cada passo. Mal amado subo em minha torre afogada, ainda na casa inicial. Aí faço um café negro na frente do meu passado. A vigília, qual e tal qualquer sono ou sonho, é de um orvalho sujo, mas alguém pode ter um pesadelo com isso. Cante outra coisa, mas bote no papel. Siga as calçadas, mesmo descalço. A sua cidade dorme, muito longe de si suores adentro. Não há ouvidos bons o bastante para isso, tudo é olvido. Ninguém mais se desvia da estrada de lençóis brancos. Você está só, assim como eu. Confesso-o agora, confesse também. Estamos nisso juntos, da esquerda para a direita e de cima para baixo, linha após linha. E que os seus olhos doam como doem meus dedos bem agora. Uma vez que já estou de pé na contramão, o avanço já é suficiente descanso. Abduz-me todo este caminho estranho onde não sem alguma frequência minhas antenas chegam a encontrar o sexo oposto, para o qual o meu infrequentemente está indisposto. E é sangrenta de lambuzar a cor dessa mulher magenta, e é nojenta de menstruar a flor dessa mulher magenta... assim com o seu sem-número de atrativos para este meu cérebro sério por trás das sentinelas dos meus sentidos sentindo nela um coração purinho como o meu, em apuros, pois nunca ora e ora suspira ora entra em silêncios, o que me deixa fora de mim. Algo utilíssimo quando os cigarros e os minutos se jogam sobre a gente em efeito dominó. E logo ecoam meses e anos quando anoiteço e o pão de cada dia adia de novo o jantar para depois do cantar. Eis o que eu faço para viver, ou ao menos vivo para fazer. E depois da fome há cada vez menos eu, mas cada vez mais meias noites vêm surdamente apreciar meu tango. Por isso recolho-me aos cantos. E me digo: continue, poeta. Apenas escreva e deixe ler e reler. Temos todo o tempo do mundo.


15 de dezembro de 2010

Não-ficção


Loucura não... Literatura; ainda que me digam ser uma louca literatura. Começa assim:

Antes de mim o sonho, que é de onde vim. Para onde vôo? Para o céu seco dessa cidade mapeada na minha cabeça em repouso na palma da mão, ao redor de qualquer dos sóis com o nariz quase sangrando e uns gostos comprimidos na boca. Sim, meu caso é ou pode ao menos parecer mesmo curioso. Uma camada espessa de pré-história no ar, haja vista a grande nuvem de pré-apocalíptica poluição que se inala nestes dias, uma droga pesada de nuvem carregada por mim de estrondo a pairar no horizonte de eventos além do olhar; nada mais e nadas amenos do que poeira das eras, partículas de dinossauro, ou, tão somente, tempo em pó.

Imagine essa fauna fantástica ao redor. E eu de pijama.

Os carros, essas belas máquinas de ir dentro para frente, filtrando em quatro rodas os grandes répteis de outrora, relançando-os na atmosfera. Paira mesmo a própria ocasião sobre nós. Canto tanto espanto... veja só: consumismo e objetos de apego, os diversos tamanhos de brinquedos. Um carro ali leva uma menininha que tosse, convulsiva, segurando o seu dinossauro de plástico. Que formidável ironia!

Sorrio um pouco disso, já satisfeito, mas não é hora ainda de conhecer a saída.

Os automóveis são em sua maioria pretos, pratas, cinzas e brancos. Os pombos também. Há quem diga que são nocivos à saúde do homem, mas não me incomodam, com exceção das buzinas, que me tiram a paz. Levanto-me do banco do parque (onde mato em legítima defesa as minhas horas de entidade desperta, vigilante reformado que sou aqui) e ganho a rua. Pego um branco. Menciono o destino e ele gorjeia alto, no que os demais abrem caminho, céleres, em revoada.

Esse sonho é um daqueles que eu podia ter até acordado, analiso.

Todos os olhos do brasileiro (pelo sotaque) que dirige se dividem entre o pára-brisa e o retrovisor a me encarar o quanto permite o trajeto. Uso ósculos de sol redondos, espelhados, e me pergunto, mentalmente, o que ele vê em mim. Pura reflexão? Incomodado, tiro detrás da orelha uma mecha de cabelos e cofio a barba, idiossincrando os gestos que não tenho, e os pêlos todos que de fato tenho parecem se arrepiar sobre a cama do meu quarto, onde devo estar a dormitar. Pergunto a ele se eu posso fumar. Ele fala baixo, ou pensa alto: “Melhor não, já que provavelmente vai mesmo pular a parte em que teria de me pagar pela corrida.” O que acho que ouço assim traduzido, e respondo: “Melhor sonhar que tenho dinheiro para pagar, mas nem precisava, porra! Que o sonho é meu, cara... Toca isso em bandeira dois, que aqui sou deus. Até podia ir voando, mas prefiro ter classe.” Aperto o botão que faz ele apertar o botão que abre a minha janela, automaticamente. E acendo um Lucky, me achando com sorte. Ele liga o rádio para que uma Brigitte Bardot agonizante me sugira à mente a couple of acasalamentos. Pergunto se tem jazz, o que ele entende chess, dizendo que “Sim, gosto muitíssimo, mas não tenho com quem jogar.” Toca para outra estação, digo-lhe, no que começa a nevar. E sai Bird, com a fumaça, pela minha janela. Ele escorrega a máquina até conseguir um roque meio tupiniquim à esquerda e me dá seu cartão, junto com o que sobrou da minha onça pintada. Diz “gracias”.

Hora do almoço, e meio dia é sempre verão pra mim. Faz 232,7777777777778 °C.

Peço uma Original, mas não dessas de hoje, que são cópias, e fico tomando bem devagar, de canudinho, a ler um gibi enquanto demora o cheese-colesterol. Estou no quadrinho grande da penúltima página, no canto inferior direito, bem desenhado assim colorido e de meio-perfil, que é o meu melhor ângulo, sentado no balcão sujo a ler a última página deste mesmo gibi, e embaixo está escrito “...continua na edição de janeiro”. Eu deveria chorar nessa parte do sonho, mas não o faço de fato; assim mesmo a balconista me pergunta se comigo “está tudo bem?”. “Apenas um pouco emotivo já é motivo”, respondo, marcando uma página qualquer como se aquele decotinho estivesse me interrompendo, no que abandono a leitura em favor do nanquim daquela pele que larga às quatro, “sim, posso esperar”.

O que fazer enquanto isso ainda não dá naquilo?

Engulo o segundo lanche com o último gole de cerveja e atravesso a rua em direção ao cinema. Um detalhe importante é que nisso sou atropelado e morro, mas daí a meio cigarro já vai começar a projeção do filme e então me apresso mais do que gostaria. Entrego a bituca a um mendigo que passa e entro na sala. Fico subitamente contente porque ir assim à sessão das duas horas é tão bom, ainda mais às quartas-feiras, quando é mais barato e vazio, apesar de hoje ser sexta-feira e de eu nem ter lembrado de descrever a parte da bilheteria, motivo pelo qual devo nem ter pagado sequer. O filme é... deixe-me pensar... alguma coisa que nunca vi na vida, talvez um Fellini novo... não... um Fellini de 1964, quando ele não lançou nada, afinal; um Fellini entre o 8 ½ e o Julieta dos Espíritos... sim... um filme genial esse Sonhar com Davi, que conta o último pesadelo tido pela cabeça decapitada de Golias, coitado, é com um toque de Proust e tal; mas o melhor é que tem simultaneamente Masina e Mastroianni no elenco. Recomendo. Duas horas depois saio com um sorriso do cinema e pego de volta aquela minha ponta de cigarro que havia deixado o mendigo fumar, pelo que ele ganhou uma moeda de um real, logicamente.

É quando a gente percebe que está sujeito a tudo nessa puta vida.

Começo a sentir as propriedades diuréticas da cerveja, da qual preciso urgentemente me aliviar, o que não faço em qualquer lugar, a menos que isso seja absolutamente necessário. Como é conveniente, procuro ir ao banheiro da lanchonete, mas está ocupado; aí volto ao cinema, onde há fila. Nada mais ao redor... procuro e não encontro nenhum lugar para mijar. Então você me dirá que “faça na rua mesmo, escondidinho” porque homem é assim e faz em qualquer lugar. Você entende e as pessoas na rua entenderiam também, certo? Mas não é tão simples, senão qual seria a graça de eu estar te contando isso? Digo que fazer num muro ou poste foi a última coisa na qual pensei. Cheguei a cogitar em por o pau para fora ali na esquina e fazer uma performance quando o farol fechasse, mijando para cima e bebendo, mas a presença ostensiva de policiamento nesse dias de pagamento (era uma região com muitos bancos) me inibiu, já que poderia ser detido por atentado ao pudor, à moral e aos bons costumes, bem como estaria incorrendo em crime passível de punição até mesmo pela vigilância sanitária, além do fato de que ainda não tenho licença para ser artista. O que eu faço, então? Vou até o banheiro daqui de casa, no meu quarto mesmo, que convenientemente é uma suíte, justamente para ocasiões como essa.

Aí, antes que você ache que trapaceei, escrevo aqui uma nota autobiográfica, a título de informação, para me justificar: o autor é sonâmbulo.

Então, já que estou ali, aproveito para escovar os dentes, passar desodorante e pentear os cabelos. Como se trata de um sonho, e não de um pesadelo, não estou com espinhas. Volto a me deitar, preparado para ir para a cama com a garçonete. Saindo do trabalho, ela quer ver um filme, e logo o mesmo que vi, mas consigo convencê-la, após explicações demoradas, de que o tal filme é de minha autoria, o que me tornaria não tão bem-vindo ali. Recomendando-me fazer análise, ela aceita o programa que proponho. Quinze minutos depois, estou no banco de trás do taxi do J. C. Merrick (aquele brasileiro), com a vénus noire me chupando, a caminho de um motel.

Sonho meu, né!?

Chegando lá, só era possível entrar de carro, já que Jeanne é moça de respeito e tem muita vergonha de ser vista nessa situação a pé. Sendo assim, tivemos de entrar os três. Eu estava pagando a corrida, em bandeira dois ainda, mas, não contente, J. C. propôs ir conosco até o quarto, uma proposta da qual mui humilde e heterossexualmente declinei. Ao invés disso, propus a ele que fosse em meu lugar, pelo que me pagaria bandeira dois. Jeanne protestou, mas aceitou fazê-lo desde que recebesse de mim por isso, para o que combinamos bandeira um. E assim, para encurtar a história, passei a noite toda ouvindo big bands no carro, a fazer planos para expandir o recém descoberto nicho de mercado, o da cafetinagem com taxímetro e, para encerrar, digo que acordei sem o dinheiro do negócio no bolso do pijama, o que é um dos principais riscos dessa moderna profissão, mas ainda assim pretendo investir no ramo.

O dia amanhecia e eu precisava pedir as contas no serviço para ter o capital necessário.

Meu chefe não quis acreditar, me chamando de louco. E, só para me sacanear, me demitiu por justa causa, recomendando-me um exame da cabeça, com o que o presidente do meu sindicato e o juiz responsável pelo meu processo trabalhista também concordaram. Nenhum advogado quis me defender, e a minha defesa inexperiente não foi suficiente para me livrar do hospício, ainda mais após o resultado dos exames ter servido de prova principal da acusação no meu caso. Pois é... Hoje, 15 de dezembro de 2010 é meu aniversário de 31 anos e aqui estou. O que posso dizer? Sou muito bem sucedido e realizado nessa profissão que exerço durante oito horas por dia, como qualquer bom cidadão, ainda que ela seja ilegal e considerada nociva à sociedade, pelo que eu mesmo me sinto também um pouco em dívida, motivo pelo qual escrevo poemas e outros textos, como este, que publico de graça aqui, apenas para o deleite dos meus colegas de diagnóstico, que como eu também se declaram inocentes. E todos têm razão.


8 de dezembro de 2010

Cinemaginário

Repriso aqui o post mais acessado neste blog até agora.
 Eu praticamente não tenho ido ao cinema. Então, ao invés de imaginar como são os filmes que eu não estou vendo, mostro aqui os filmes que estou imaginando. São sinopses de obras cinematográficas ficcionais de ficção (SIC).
 
 
# Péssimo / * Ruim / ** Regular / *** Bom / **** Ótimo / S Sem Avaliação
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A Nuvem Branca [**] (Pâthragâda) Irã, 2005. Direção: Farroukh Makhmalbaf. Com: Forough Panahi, Hassan Yektapanah e Jafar Farrokhzad. Após passar anos em expedição fotográfica na Antártica, mulher cega decide voltar para sua cidade natal, no Irã, onde precisa enfrentar fantasmas metafóricos de seu passado. 189 min. 14 anos.
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Longa Jornada Jack Adentro [***] (Long Day's Journey Into Jack) EUA, 1999. Direção: Woody Allen. Com: Diane Keaton, Faye Dunaway, Mia Farrow e Arnold Schwarzenegger. Tragédia freudiana sobre um lutador de luta livre com sotaque engraçado que se desvencilha dos duros treinos físicos diários e troca sua mulher, uma ambientalista de quadris demasiado estreitos, por sua psicanalista mais velha praticante de yoga, com a qual irá pouco a pouco descobrindo a prazerosa técnica conhecida como autofellatio. Montagem levemente baseada na peça de Eugene O’Neill. 132 min. 14 anos.
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Merdas Acontecem [****] (Merde, Allors!) França, 1966. Direção: Jacques Tati. Com: Alain Delon, Gérard Depardieu e Pierre Verger. Clássico pós-Nouvelle Vague dirigido por um de seus inspiradores. Etnógrafo francês volta do Brasil como pai de santo e, incorporando Napoleão Bonaparte, planeja dominar a Europa a começar pela Argélia, mas seus planos esbarram na chegada dos Beatles para um aguardado show em Paris. Oscar de Melhor Fotografia com trilha original de Henry Mancini. 110 min. 12 anos.
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Memórias Sentimentais do Meu Clitóris [#] (Idem) Brasil/Dinamarca, 1990. Direção: Hebe Camargo e Renato Aragão. Com: Rita Cadillac, Jô Soares, Gretchen, Fernanda Montenegro, Alexandre Frota, Marcello Mastroianni e grande elenco. Drama familiar passado em Brasília nos anos 70. Durante um desfile militar do Sete de Setembro, o ministro da defesa se atrasa por ter de fazer o parto de uma cadeirante dentro de um táxi preso no trânsito, a coisa então degringola para um estupro coletivo e logo é carnaval. Esse traumático flashback termina com o taxista já idoso num manicômio contando-o ao psiquiatra de plantão, que vem a compor o júri popular que decidirá no tribunal se deve ou não condenar o monarca Dom Pedro. 314 min. 18 anos.
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O Fóssil de Deus [****] (Il Fossile di Dio) Itália/Azerbaijão/Bélgica/Angola, 1953. Direção: Luc Van Damme. Com: Nelson Mandela, Svetlana Kasparov, Zé do Caixão e Jean-Paul Belmondo. Clássico de Van Damme (não o lutador, mas o pai dele) em cópia restaurada. Um inconseqüente alcoólatra inglês em visita à savana africana, durante conflito tribal encontra um túnel que o leva até Jerusalém, onde um míssil abre um túnel para o Tibet, achando em um pico de lá outro túnel até o Vaticano, lá uma constipação leva-o a se converter para gás natural. O diabo assiste a tudo, narrando em português de Portugal as profecias do convertido sobre o futuro da Bolívia com Evo Morales. 112 min. 10 anos.
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Os Mil Monóculos no Testamento do Doutor Jogador [****] (Die Tausend Monocles in der Testament des Dr. Spieler) Alemanha, 1961. Direção: Fritz Lang. Com: Boris Karloff, Jean Marais, Werner Krauss e Rudolf Klein-Rogge. O espírito auto-destrutivo do Dr. Mabuse retorna nesse último filme de Lang que se achava estar perdido, trazendo as últimas imagens do ator Klein-Rogge. O doentio doutor ressurge para possuir as mentes dos famosos criminosos Fu Manchu, Dr. Caligari e Fantômas, que juntos disseminam o mal que destruirá todo o mundo para Mabuse afinal poder reinar absoluto sobre suas cinzas. 119 min. 14 anos.
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Feijoada Tatuada II [**] (Idem) Brasil, 2006. Direção: Arnaldo Baptista. Com: Timothy Leary, Rita Lee, Serguei, Elke Maravilha e Syd Barret Cover. Segunda incursão do músico na 7ª arte, o documentário segue os passos do aclamado filme anterior, em que através do olhar de um porquinho da índia drogado com LSD de origem suspeita, conhecemos as dificuldades de cognição e relacionamento dos moradores de uma comunidade na Serra da Cantareira, em SP, até a chegada inesperada de uma misteriosa surda-muda. 126 min. 16 anos.
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O Fim Está Só No Começo [**] (终只是在开始) China, 2005. Direção: Zhangye Ye. Com: Chowchow Li, Tang Dlaranja e Quentin Tarantino. Comédia sobre dois irmãos, um é um monge Shaolin com relação incestuosa com o pai, o outro, um cego que finge enxergar ao vender yakisoba nas ruas de Pequim. Tudo vai bem até que a gripe asiática os leva ao Cirque du Soleil onde um mágico impotente ensina-lhes uma comovente lição de vida. 132 min. 16 anos.
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O Auto dos Anões [S] (Idem) Brasil/Japão, 2007. Direção: Maria das Graças Xuxa Meneghel e Akira Kurosawa. Com: Nelson Ned, Toshiro Mifune, Ariano Suassuna e Romário. Várias confusões marcam as provas de fim de ano no curso supletivo na republiqueta de Nanópolis, em meios a aulas tediosas de Educação Moral e Cívica, merenda escolar estragada e grupos de estudo bem maconheiros, vemos se repetirem as tentativas do baixinho/gnomo conhecido como Mei Apataca para ser aprovado, ora colando dos colegas mais baixos, ora propondo fazer sexo oral no professor nissei. 120 min. 16 anos.
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O Soviete de Petrogrado [***] (Вся власть советам) URSS, 1922. Direção: Sergei Eisenstein Em fevereiro de 1917, antes da Revolução Vermelha, uma série de reuniões e passeatas violentas acontecem no Dia Internacional das Mulheres, nada de novo até então, exceto pelos cossacos, símbolos do terror czarista que, ao invés de as reprimir, ficam cossando. 72 min. 12 anos.
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O Espartilho do Saxofonista [****] (Sexy Dr. Sax) EUA, 2004. Direção: Bill Clinton. Com: Jackie Chan, Paris Hilton, Wynton Marsalis e Marianne Faithfull. Em Las Vegas, acompanhamos o conturbado cotidiano de um imigrante ilegal chinês tentando alcançar a fama ao improvisar seu jazz em prostíbulos para transexuais. Até que um dia o fantasma do pai de Hamlet aparece para ele, aconselhando-o a tatuar os dois braços com os desenhos eróticos de Rodin, pois em breve terá as pernas amputadas com um raro abridor de latas retorcido que Uri Geller ganhou do Papa durante a Guerra Fria; profecia que, uma vez cumprida, não por acaso lhe trará dores lancinantes e celebridade imediata. 118 min. 18 anos.