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5 de maio de 2009

Pirada Gutural

Quando o sol se punha, na tarde de sábado, dia 2 de maio, em São Paulo, começava a aguardada quinta edição da tão propagandeada Virada Cultural, que reúne anualmente cerca de quatro milhões de pessoas, ao longo das 24 horas que dura o evento, em busca de ao menos uma parte da felicidade gratuita que lhe é negada pelo restante do ano. A Prefeitura oferece de uma só vez uma programação com 800 atrações, que caberiam melhor em um calendário inteiro, mas é comprimida e enlatada em uma única data que, exatamente por esse motivo, torna-se memorável.

Esta reportagem pretende trazer à tona desde o cerne o que a cidade não digere desse prato mal lavado que todos engolimos, já tão tipicamente inserido no cardápio do nosso dia-a-dia de só um dia por ano. É o relato deste poeta, um estudante paulistano de jornalismo que esteve andando toda a madrugada pelo centro agudo desta crônica.

Há mais ou menos dois mil anos o poeta romano Juvenal escrevia em seu livro hoje muito conhecido, que chamou de Sátiras: “...Já há muito tempo, desde quando ainda não vendíamos nossos votos para ninguém, o Povo tem abdicado de seus deveres; para um Povo que teve nas mãos o império, senado, legiões – tudo, agora se contenta e ansiosamente aguarda por apenas duas coisas: pão e circo.” Bem, já se viu que fizemos progressos políticos: hoje o circo é anual, e o pão de hoje só amanhã.

E como canta um músico meu amigo, que não foi convidado para essa festa que uns homens armaram para nos convencer, “paulistano quer show... gosta de escândalo!” É por volta da meia-noite que começa de fato o espetáculo, que a Éssepê udigrudi sai de todos os bueiros e latrinas, dos cantos que esta noite cantam em coro.

A polícia pôs na rua 2500 homens a mais do que o de sempre, um para cada 1600 cidadãos. E no dia seguinte o prefeito anunciou não ter sido registrada nenhuma ocorrência grave. O que, pelas estatísticas oficiais, provaria que o paulistano é pacifista e/ou facilmente controlado pela violência monopolizada pelo Estado. Mas o que eu observei de bem perto foi um sem número de crimes, observados de mais perto ainda pela polícia; sempre em quartetos, ora um que passava a pé conversando animadamente, ora outro em volta da viatura parada na esquina a olhar o mulherio. Ninguém fez nada diante de brigas, roubos e vandalismo. Enquanto gangues de assaltantes faziam a festa; bandos armados com paus redefiniam terror; jovens bárbaros faziam suas necessidades de cima do viaduto sobre os passantes em baixo, que necessariamente passavam mal.

O transporte público estava especialmente ruim: poucos ônibus, a maioria com itinerário alterado; a estação República do metrô fechada, dizem que devido à passagem do “Megatatuzão”... o diabo! Os roqueiros estavam do lado de cima. A cidade, pouco mais iluminada que o normal, não estava bem sinalizada, como depois se divulgou; os poucos avisos e informativos estavam estrategicamente afixados nos lugares mais escondidos, perfeitos para urinar ou vomitar. E o público sem privada.

Banheiro público somente químico, improvisado e escasso. Era mesmo a coisa mais infreqüente encontrar um pelo caminho. Em geral ficavam próximos aos locais onde havia shows de música, tendo sido muito úteis àquelas pessoas que subiram neles para ver melhor aos seus artistas favoritos. Já as lixeiras, todos sabemos como já não são suficientes, tanto no centro como no resto, e não vi uma lixeira extra sequer, resultando que os garis trabalhavam sem parar, mesmo não sabendo por onde começar, perdidos em meio aos rios de lixo em que se converteram todas as ruas. Muita latinha e garrafa quebrada pelo chão, o povo deixava cair acidentalmente em qualquer lugar. Ambulâncias vi muito poucas durante toda a noite, as que vi estavam trabalhando, as sirenes ligadas tentando inutilmente passar pela multidão.

Com todos os lugares lotados e loucos, passei a noite indo de um ponto a outro entre os bairros da região central. O que eu já esperava e, na verdade, já tinha até mesmo programado: não me programei... até tentei. Desde quando foi anunciada a programação, semanas atrás, dei-me conta de que não havia nenhum evento isolado que fosse realmente interessante, pelo menos ao ponto de fazer com que eu planejasse me mover até lá. Então, desde logo o plano era só andar bêbado por aí, flanando, a encontrar amigos, reparar na arquitetura, olhando as pessoas e ouvindo música ao longe, pelo coração de Sampa. Eis uma idéia de diversão. Esta cidade deveria ser muito melhor ocupada por nós, que pertencemos a ela tanto quanto ela nos pertence; principalmente este centro paulistano, já e ainda decadente, bem como todos os parcos espaços urbanos públicos, dia e noite. São Paulo deveria sair do horário e assumir que é 24.

Haveria inclusive mais oportunidades para fotografar a cidade de noite, já que, naquela noite, estando em inúmeras horas e lugares certos para todas as fotos que eu poderia ter tirado, poderiam ter tirado a câmera de mim; e aí eu teria estado no lugar e hora errados, e não teria voltado com a matéria (fatos sem fotos).

Dizem que o caos não tem forma, deve ser porque não é do nada que eu o via se formando e deformando sob as árvores e pontes e marquises, sob o céu da metrópole; não mesmo, a semente sempre esteve ali. A noite avançava e a urbe mostrava seu lado mais selvagem, como poucas vezes vi, da mais intensa sujeira e barulho, ou seja, da mais intensa humanidade; milhões de individualidades se acotovelando, descontroladas todas; pessoas... na primeira curva do terceiro milênio, neste Sul de mundo, o Terceiro Mundo. E se Sampa não pertence ao chamado Brasil profundo, é porque é mais no fundo da imundície mesmo, terra, água e ar. São Paulo é o pulmão do Brasil. Com um tipo de tumor que não se poderia dizer maligno, mas anárquico. Dava para sentir a tensão na atmosfera carregada e maciça, fatiável, um ensaio de revolução, de bolso.

No brasão da bandeira da cidade se pode ler seu lema, a inscrição latina que diz “non ducor duco”, que quer dizer “não sou conduzido (à loucura), conduzo”. O relógio marcava um infinito vertical, dois pontos: zero-zero. Com o domingo amanhecendo, eu sentia nos meus ossos a ressaca da cidade; mais lixo em evidência, tudo tão plástico... metálico, vítreo, de todas as cores da própria cidade. E todas as esquinas eram mananciais de onde brotava gente, isso sem parar de ir gente embora para caber ainda mais. Paulistanos, paulistas, brasileiros, turistas. Alguns não iam nem vinham, ficavam. Ficaram lá. Gente que nunca antes vi vivas, nunca antes vi tanta gente caída pelas calçadas, escadas e cantos. Será que sem teto sem para onde ir? Sem dinheiro ou energia ou lucidez para voltar? Sem vida? Vou para casa tomar um café com pão já que o mundo ainda não acabou. Já que a festa não acaba nunca. Faltavam ainda umas dez horas para acabar, certo? Errado! Está só na metade. A Virada Cultural e a final do Campeonato Paulista (na qual a vitória do Corinthians e a festa subseqüente eram previsíveis) terminam juntinhas, como se a primeira festa, que termina, passasse o bastão para a seguinte, para quem a maratona de imprevisíveis continua, sem fim, até chegar segunda-feira. Continuo torcendo, mesmo que completamente virado: “Salve o prefeito... O brincalhão dos brincalhões... Eternamente... até chegar às eleições”.