para Robinson Machado
Depois da última pincelada, vislumbrei inédita e com cem inúteis precedentes uma cor dolorida numa dor colorida que não deixava de todo de me esboçar. Tomado de assalto pela abstração do projeto completo, fui artificial. Como me expressar melhor, senão prudentemente, através do que expressamente comunica-se sem intermediários com a minha sensibilidade? Fato é que minha atitude, assim mesmo, não se me afigurava passiva, já que a própria estranha cor fantástica participava da minha criatividade. Destacada do conjunto, ao centro dos semitons de relativa familiaridade ou relativa estranheza, o que dá no mesmo, a mesma sabia-me a si mesma um pigmento insuportável, emancipado do suporte; no que, enquanto o elemento fundamental, as outras cores no geral, aplicavam-se em fazer sentido, ela, com estudada naturalidade e simplesmente, se fazia sentir. Seria um quadro prestigiado porque prestidigitado? Sei que vai valer alguma coisa quando eu estiver grisalho, ou careca, ou morto. A morte é, como nunca e definitivamente, a mais inesperada das derrotas, embora a priori também seja tão efêmera e fugaz quanto nos parece a moda; já a vida, esta poética que a posteriori nos é erroneamente atribuída, constitui um completo e opulento triunfo, mesmo apesar de sempre parecer uma derrota. Eu posso ainda não ser o artista que gostaria, mas por assim dizer escrevo o que gostaria de ler; não sou um bom crítico, mas faço uma autocrítica.
O quadro inteiro ainda não era eu, dentro embora me expressasse para além de mim, para fora. Não chegando a constituir simulacro, emoldurava o indiscernível desde o próprio cerne misteriosamente óbvio, aos brados no que calava de mais profundo seu exterior, estando imerso no ser superficial. Realce que me imiscuía na tessitura mesma do relevo menos aparente, aparentado sobremaneira no aspecto, a pretender apenas sutilmente demonstrar-se. O inusitado é que me contrastava. Utilizando-se não somente da aquarela de experiências que as demais cores combinadas nos propõem, como sombras, calor ou frio, e profundidade; esta ia muito além, pois estava munida mesmo de autoconscientes e apaixonados argumentos ambiciosos, carregando inadvertidas lembranças e previsões, com seus mil e um vigorosos instintos e uma racionalidade monstruosa; mostrando-se igualmente impregnada de um irascível vigor metamorfo, conforme se recombinava parecendo onírica ou mutante a cada abotoar e desabotoar de meus olhos incrédulos, e mais... no durar de um mesmo olhar, parecia ir além de mim e de si mesma, dando mostras de que podia reconfigurar meus olhos e a própria luz. Apesar de tudo já se me configurar desde o princípio como uma improbabilidade, no que cheguei a propriamente duvidar que ela sequer existisse, ainda pude, contrariado, discernir mais além, constatando não apenas que a cor estava viva, mas que era o esboço sensorial de um deus pictórico. Observado de muito perto ou de muito longe, eu não me via, mas ele sim. Cuidado com a arte: é frágil! Roubada para enganar-te: é plágio! Nenhuma arte de verdade é tão autêntica como a falsa.
Difícil de apreender à primeira vista, mostrava-se, após uma exposição mais atenta, apenas como algo muito fácil de não se entender. A melhor das metáforas é uma certa anti-ironia, porque não diz uma coisa querendo não dizer outra. Não há diferença entre caricatura e alegoria. Foi um exercício meticuloso de acaso, um improviso calculado em cada erro seu completamente inesperado, ou mesmo um imprevisto ensaiado; por absurda absoluta coincidência, quis-me desde o início assim acidental. O mérito desse método de com nada mais se parecer era assim um pouco muito meu também, ao menos me parecia. O que nos mostra como algures, alhures se nos mostra. A tal cor quase não era, posto que pudesse ser, desde que não se deixasse que o fosse. Na arte, como em tudo o mais, não se faz uma omelete sem quebrar os ovos, mas é absolutamente desnecessário fazer a omelete, uma vez que já se tenha quebrado os ovos. Angustiava-me em cada pequenina aflição que me infligiam seus múltiplos pormenores, infringidos meus recatos recônditos fustigados pelo horror com que, vencido e conquistado, me apaixonei por aquilo, como quem se entrega ao colo da mãe, ao braço do pai, à boca do derradeiro amor. Antes mesmo de eu me atrever a cheirá-la, tocá-la ou lambê-la, escravizei por completo minha visão obediente àquela mancha plurincolor, como ela mesma se fazia cada vez mais e mais dependente de mim; ao ponto de ambos não sabermos mais se juntos éramos os mesmos ou outros diversos, se éramos ainda um pouco eu ou algo daquele ponto. Não como híbridos ou amálgamas, interpenetrávamos-nos amiúde como se o detalhe do quadro e o meu olho em detalhe fossem uma simbiose ímpar de desejo objetivo e objeto de desejo, para sempre fatal e irretroativamente mútuos. E a maior solidão que encarnávamos era a de sermos totais.
A representação do imaginado que vivi outra coisa não queria expressar, desperdiçando a si mesma ao me consumir as autorias atribuídas, simbolizando tudo e significando nada, além do que, vez e outra, o contrário mesmo não se nos fazia inverossímil, dadas as supostas inteligibilidades passivas de apreciação na revisão geral da obra em questão, sendo irrelevante saber se esta era figurativa ou abstrata, fato é que me parecia um auto-retrato pouco vaidoso de mim, embora eu mesmo estivesse muito vaidoso dele, de tê-lo feito. Sempre quis saber pintar a verdade nua, vestindo-a com arte; ou pintá-la vestida com arte tal que se sentisse nua. Qualquer outro pensamento seria ridículo, se não fosse ao menos divertido. É que todo poema é um poema dentro de todo poema. O fato é que cintilava maravilhas a tal cor, e desde o seu próprio ponto de vista muito pessoal piscava para mim; sabia mais sobre o seu autor do que ele mesmo podia compreendê-la. Em vista de quando perscrutava minha tênue existência a me olhar, punha-me nu e efêmero diante da voracidade com que me contemplava, notadamente assenhoreando-se de meu destino, comigo na mira. Tenho para mim que se apiedava. Em contraste com os indeléveis novos tons além e aquém de nós, particularmente no ponto de convergência em que o próprio eu observador dilui um tanto o onipotente borrão original, de repente displicente a pintura assina-se a si própria; assinalando-me com precisão numa auto-intervenção, a verter com verve sobre si a arte necessária de uma só lágrima, perfeita para borrar a expressão do artista a desaperfeiçoar sua obra-prima, em conformidade plena com o estilo desbotado com que eu mesmo sempre costumo me pintar.
O quadro inteiro ainda não era eu, dentro embora me expressasse para além de mim, para fora. Não chegando a constituir simulacro, emoldurava o indiscernível desde o próprio cerne misteriosamente óbvio, aos brados no que calava de mais profundo seu exterior, estando imerso no ser superficial. Realce que me imiscuía na tessitura mesma do relevo menos aparente, aparentado sobremaneira no aspecto, a pretender apenas sutilmente demonstrar-se. O inusitado é que me contrastava. Utilizando-se não somente da aquarela de experiências que as demais cores combinadas nos propõem, como sombras, calor ou frio, e profundidade; esta ia muito além, pois estava munida mesmo de autoconscientes e apaixonados argumentos ambiciosos, carregando inadvertidas lembranças e previsões, com seus mil e um vigorosos instintos e uma racionalidade monstruosa; mostrando-se igualmente impregnada de um irascível vigor metamorfo, conforme se recombinava parecendo onírica ou mutante a cada abotoar e desabotoar de meus olhos incrédulos, e mais... no durar de um mesmo olhar, parecia ir além de mim e de si mesma, dando mostras de que podia reconfigurar meus olhos e a própria luz. Apesar de tudo já se me configurar desde o princípio como uma improbabilidade, no que cheguei a propriamente duvidar que ela sequer existisse, ainda pude, contrariado, discernir mais além, constatando não apenas que a cor estava viva, mas que era o esboço sensorial de um deus pictórico. Observado de muito perto ou de muito longe, eu não me via, mas ele sim. Cuidado com a arte: é frágil! Roubada para enganar-te: é plágio! Nenhuma arte de verdade é tão autêntica como a falsa.
Difícil de apreender à primeira vista, mostrava-se, após uma exposição mais atenta, apenas como algo muito fácil de não se entender. A melhor das metáforas é uma certa anti-ironia, porque não diz uma coisa querendo não dizer outra. Não há diferença entre caricatura e alegoria. Foi um exercício meticuloso de acaso, um improviso calculado em cada erro seu completamente inesperado, ou mesmo um imprevisto ensaiado; por absurda absoluta coincidência, quis-me desde o início assim acidental. O mérito desse método de com nada mais se parecer era assim um pouco muito meu também, ao menos me parecia. O que nos mostra como algures, alhures se nos mostra. A tal cor quase não era, posto que pudesse ser, desde que não se deixasse que o fosse. Na arte, como em tudo o mais, não se faz uma omelete sem quebrar os ovos, mas é absolutamente desnecessário fazer a omelete, uma vez que já se tenha quebrado os ovos. Angustiava-me em cada pequenina aflição que me infligiam seus múltiplos pormenores, infringidos meus recatos recônditos fustigados pelo horror com que, vencido e conquistado, me apaixonei por aquilo, como quem se entrega ao colo da mãe, ao braço do pai, à boca do derradeiro amor. Antes mesmo de eu me atrever a cheirá-la, tocá-la ou lambê-la, escravizei por completo minha visão obediente àquela mancha plurincolor, como ela mesma se fazia cada vez mais e mais dependente de mim; ao ponto de ambos não sabermos mais se juntos éramos os mesmos ou outros diversos, se éramos ainda um pouco eu ou algo daquele ponto. Não como híbridos ou amálgamas, interpenetrávamos-nos amiúde como se o detalhe do quadro e o meu olho em detalhe fossem uma simbiose ímpar de desejo objetivo e objeto de desejo, para sempre fatal e irretroativamente mútuos. E a maior solidão que encarnávamos era a de sermos totais.
A representação do imaginado que vivi outra coisa não queria expressar, desperdiçando a si mesma ao me consumir as autorias atribuídas, simbolizando tudo e significando nada, além do que, vez e outra, o contrário mesmo não se nos fazia inverossímil, dadas as supostas inteligibilidades passivas de apreciação na revisão geral da obra em questão, sendo irrelevante saber se esta era figurativa ou abstrata, fato é que me parecia um auto-retrato pouco vaidoso de mim, embora eu mesmo estivesse muito vaidoso dele, de tê-lo feito. Sempre quis saber pintar a verdade nua, vestindo-a com arte; ou pintá-la vestida com arte tal que se sentisse nua. Qualquer outro pensamento seria ridículo, se não fosse ao menos divertido. É que todo poema é um poema dentro de todo poema. O fato é que cintilava maravilhas a tal cor, e desde o seu próprio ponto de vista muito pessoal piscava para mim; sabia mais sobre o seu autor do que ele mesmo podia compreendê-la. Em vista de quando perscrutava minha tênue existência a me olhar, punha-me nu e efêmero diante da voracidade com que me contemplava, notadamente assenhoreando-se de meu destino, comigo na mira. Tenho para mim que se apiedava. Em contraste com os indeléveis novos tons além e aquém de nós, particularmente no ponto de convergência em que o próprio eu observador dilui um tanto o onipotente borrão original, de repente displicente a pintura assina-se a si própria; assinalando-me com precisão numa auto-intervenção, a verter com verve sobre si a arte necessária de uma só lágrima, perfeita para borrar a expressão do artista a desaperfeiçoar sua obra-prima, em conformidade plena com o estilo desbotado com que eu mesmo sempre costumo me pintar.