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30 de agosto de 2009

Subentendidos


Living is easy with eyes closed

Misunderstanding all you see
It's getting hard to be someone
But it all works out
It doesn't matter much to me
Lennon / McCartney

O cara pára ao meu lado na primeira esquina, na saída do cinema. Espero o farol de pedestres abrir para atravessar a rua, ao lado da namorada, de mãos dadas. Estamos fumando e carrego uma sacola com um bom vinho. Nem estamos tão bem vestidos assim. São 23h30. Ele nem está tão mal vestido assim. Mas está bem ao meu lado, perto, temos a mesma altura, talvez a mesma idade. Ele fala comigo, mas mal consigo distinguir o que diz, não porque não saiba falar ou porque esteja bêbado, não é o caso; aparentemente, pronuncia mal a frase por certo constrangimento, talvez constrangido por me constranger. Ambos entendemos:

- Você ...dinheiro... comer? (eu penso: "comer", um eufemismo para "beber") - E faço aquela cara.
- Não tenho. (ele pensa: "não tenho", um eufemismo para "não quero te dar") - E faz aquela cara.
- Por favor, abra o coração... (eu penso: "coração", um eufemismo para "carteira") - E fazemos uma cara.
- Estou mesmo sem! (eufemismo para "estou me sentindo ameaçado, vá tomar no cu ou chamo a polícia") - E ele entende.
- Deus te abençoe... (eufemismo para "vá para o inferno, eu podia te roubar seu burguesinho de merda") - E eu entendo.

Aí caminho até a próxima esquina, comentando esses eufemismos com a namorada. É foda isso e é foda aquilo. Pensamos. Rimos. Ou rimos antes de pensar. E um outro cara, um cara de pau, tosco e inconveniente, nos pára e, se dirigindo também a mim, pede dinheiro para comer. Constranjo-o:

- Não, cara. Eu sei que é pra você gastar com pinga! (eufemismo para "vocês trabalham em equipe, porra?") - E acho que entendi.
- Então me dá um cigarro... (eufemismo para "pensa que vai se livrar de mim tão fácil?") - E eu dou. - Quem entende?