Living is easy with eyes closed
Misunderstanding all you see
It's getting hard to be someone
But it all works out
It doesn't matter much to me
Lennon / McCartney
O cara pára ao meu lado na primeira esquina, na saída do cinema. Espero o farol de pedestres abrir para atravessar a rua, ao lado da namorada, de mãos dadas. Estamos fumando e carrego uma sacola com um bom vinho. Nem estamos tão bem vestidos assim. São 23h30. Ele nem está tão mal vestido assim. Mas está bem ao meu lado, perto, temos a mesma altura, talvez a mesma idade. Ele fala comigo, mas mal consigo distinguir o que diz, não porque não saiba falar ou porque esteja bêbado, não é o caso; aparentemente, pronuncia mal a frase por certo constrangimento, talvez constrangido por me constranger. Ambos entendemos:
- Você ...dinheiro... comer? (eu penso: "comer", um eufemismo para "beber") - E faço aquela cara.
- Não tenho. (ele pensa: "não tenho", um eufemismo para "não quero te dar") - E faz aquela cara.
- Por favor, abra o coração... (eu penso: "coração", um eufemismo para "carteira") - E fazemos uma cara.
- Estou mesmo sem! (eufemismo para "estou me sentindo ameaçado, vá tomar no cu ou chamo a polícia") - E ele entende.
- Deus te abençoe... (eufemismo para "vá para o inferno, eu podia te roubar seu burguesinho de merda") - E eu entendo.
Aí caminho até a próxima esquina, comentando esses eufemismos com a namorada. É foda isso e é foda aquilo. Pensamos. Rimos. Ou rimos antes de pensar. E um outro cara, um cara de pau, tosco e inconveniente, nos pára e, se dirigindo também a mim, pede dinheiro para comer. Constranjo-o:
- Não, cara. Eu sei que é pra você gastar com pinga! (eufemismo para "vocês trabalham em equipe, porra?") - E acho que entendi.
- Então me dá um cigarro... (eufemismo para "pensa que vai se livrar de mim tão fácil?") - E eu dou. - Quem entende?