Concedi uma entrevista ao psicólogo e escritor Marcelo Novaes.
1) Mário de Andrade falou da intransitividade do verbo amar. Fale-me da impossibilidade [ou será "implausibilidade"?] do objeto-amor.
Acho impossível não amar, no que concordo com Mário de Andrade, mas discordo dele quando atribui uma intransitividade poética ao amar. O que denuncia nele, senão um platonismo ou qualquer outro recalque erótico-afetivo, sobre o qual me abstenho de entrar no mérito por não ter a pretensão de tentar despenar o sexo dos anjos, ao menos uma nítida tendência a “poetizar seus poemas”, um defeito mais-que-perfeito. Isto é espantoso nele, precisamente por seu modernismo, que já havia dado a essa época o melhor de sua poesia e ainda nos daria uma boa rima para obra-prima, o Macunaíma. Desavisados poderiam me achar demasiado herético e iconoclasta, dado o meu comentário, mas me apoio somente na gramática que traz o verbo amar, já em estado de dicionário, poético. Amar é um verbo transitivo direto, requer alguém ou algo além da palavra em si, ainda que esse ou isso seja o si mesmo. “Ele morreu” é intransitivo, só requer o ponto final, por ser auto-explicativo; já um “ele amou”... quanta diferença... a gente, que não conhece, tem logo vontade de perguntar: Quem? O quê?
Sem essa pessoa que o amar requer, não é amor. Já que quatrocentos anos antes um poeta precisou de apenas um olho para escrever “Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”
Amar é lindo, louco e colorido, amarelo cura. Pode até doer, mas nunca cansa, e nos ensina tudo, menos como evitá-lo. Amar é entrar na roda, amar é foda. Digo que o amor é um objeto impossível comparando-o àquelas figuras geométricas estranhíssimas, de imenso interesse para os matemáticos e psicólogos, e indecifráveis até para o artista.
Amor é do que tudo é feito, é tudo o que há entre o de onde viemos e o para onde vamos. Fazemos amor quando ele nos refaz. Pensamos amar tanto quanto amamos pensar. Amamos mais e somos mais amados ao nem pensar no amor, enquanto pensamos e somos pensados pelo próprio amor. Amo pensar nisso.
2) Já ouvi de um mitômano e escritor pra-lá-de-medíocre a máxima: "O Ministério da Saúde Adverte: Excesso de Sanidade Faz Mal à Arte". Eu gostaria de ouvir a sua explicação para este ditado [não deve ser de cunho do dito cujo, e se for, lhe faz jus; a ele, fique claro], uma vez que seu blog alude a um apelo para que fujamos dessa tal sanidade. Porventura, chamas aos "normóticos" de sãos? Falas da normalidade-sanidade bur(r)ocrática? Qual o teu nível de interação com a "normalidade média"? "A sociedade te entende"?
E que escritor não é um mitômano? A verdade, como a cegueira, é um ponto de vista. Repare que nem a literatura médica registra “verômano”. Mesmo mencionando escrevente ou caligrafista estaríamos admitindo que... Bem, digressões a parte, voltemos ao todo, essa interrogação. O título do meu espaço alude sim àquele imperativo, mas também trocadilha-se com “não-ficção”, porque pratico e prego e martelo esta arte experimentável na vida e vice-verso o viciosoroboros desse círculo. Super-sou contra qualquer normatividade. A tal frase tenta um sentido que não atenta menos contra os meus seis sentidos do que “O Ministério da Cultura adverte: excesso de analfabetismo faz mal à saúde”, mas também posso entender simplificações. Eu diria que lugar de gente sã é no hospício; o que concordaria com todos os muros e cercas já construídos e em construção, todas as fronteiras que arquitetamos para nos apartarmos mais de todos nós, os salubrissíssimos normais-normenos. Ver a etimologia da palavra esquizofrenia. Criam dificuldade para vender facilidade, vide a política, a religião, o direito et cetera. A arte, qual e tal as anteriores, entra nesse jogo e aposta tudo, porque o artista se joga.
Assim, esse é um por-isso pelo qual posso me assumir abertamente hermético, dúbio ou tríbio, críptico até. Ninguém compreende ninguém, digo-o categoricamente, no sentido de que jamais poderíamos sê-lo de forma absoluta. O artista, bem como o louco, o jovem, o revolucionário, tende a se sentir incompreendido. E é. Mas quem não? Notório é que possamos vez ou outra nos interessar por brincar de algo com alguém por algum tempo, aprendendo as regras daquele seu jogo e participando daquilo com ele, sem, no entanto, podermos chegar a vencê-lo ou a nos convencer da inevitável derrota. Isto é, vemos a mágica linda e misteriosa que um pianista extrai de seu instrumento, e se quisermos podemos aprender a ouvir, e logo a tocar, ou, por outro lado, podemos nos interessar mais pela habilidade com que o piano se faz tocar, e logo aprender a fazer um. Quero dizer que há uma infinidade de linguagens possíveis, de tecnologias disponíveis para tudo e para todos, basta escolher. Exemplo desse mistério é a tecnologia avançadíssima da própria língua ordinária, o nosso idioma hodierno. Quem domina? Este país conta com três quartos de analfabetos funcionais, para os quais uma bula de remédio, um contrato de trabalho ou as instruções para subir uma escada permanecem ininteligíveis, grego do bom, arcaico e intransponível. Note que ainda falo de fronteiras.
Há uma imensa loucura em ser artista, aquela loucura própria do especialista, sobretudo por seu objeto de estudo ser um sujeito de estudo, os seus contemporâneos e os seus conterrâneos e ele mesmo.
A poesia leva a loucura ou gera sanidade? A poesia é a última estradinha de terra do mundo, e enquanto permanecer assim continuará levando a lugares surpreendentes.
3) Quão tecnológico é você em seu processo criativo? Já pôde [eis o acento imprescindível!, esse ninguém faz cair!] prescindir disso? Já sofreu crise de abstinência por afastamento dos meios tecnológicos? Ao fim de tudo, qual é a imago prezada que tuas retinas fatigadas guardam?
Já há tecnologia o bastante na linguagem. Ortografia e gramática são ciências complexas e elitistas, razão pela qual evito ter preconceito para com quem escreve errado. Esse "errado", talvez, devendo até aparecer assim, entre aspas. Melhor errrado.
Só preciso de papel e caneta, mas mesmo barro ou bosta, seiva ou sangue serviriam. Há alguns anos uso o computador, que facilita bastante o processo de pesquisa, montagem e organização de cada palavra, frase ou verso, parágrafo ou estrofe, capítulo ou poema, cada livro; isso por propiciar uma visualização mais ideal da obra, quase eidética, quase como acontece ainda no campo mental. A internet é o que há, liberdade via satélite. Aqui cabe tudo, tem público. Licença poética é um pleonasmo, já que tudo pode ser considerado poesia, uma arte livre; já que os limites do que é e do que não é arte são tão subjetivos quanto o gosto pessoal (para incorrer em outro pleonasmo). Vale tudo. E na comunicação oral ou escrita, virtual ou pessoalmente, acho que o mesmo se aplica; valendo qualquer estilo de mensagem, desde que se consiga estabelecer eficientemente uma comunicação entre emissor e receptor.
O universo cibernético per se também me põe em contato com novas linguagens que não conheceria de outra forma. A comunicação virtual flui de forma muito dinâmica, onde o link é a manchete que gera a gíria que vira jargão da noite pro dia do Brasil pro Japão. É verdade que a revolução não será televisionada, pois se dará por download ou streaming. E se a sua vida não está na internet, você não existe.
Tenho passado mesmo muito tempo no computador. Isto acabou por me deixar um pouco mais em casa, sozinho. E só me afasto dela por muito tempo por um bom motivo, como uma boa viagem. Sem nada de extraordinário para substituir, acho que passo até uma semana sem, no máximo. Intercalo-me ou me extragrito ora aqui ora acolá. Por não abrir mão do pé sentir a grama, de poder apreciar uma construção na rua, um quadro em exposição, um filme na sala de cinema, uma música num show ou apenas ler um bom e velho livro de papel, tinta e pó, que ainda é a melhor invenção humana. Tampouco troco sexo real por virtual, nem mesmo com antivírus.
Acho que a imago com a qual me ligo mais ao inconsciente coletivo é a mais bestial possível, o que acho muito justificável, por não reprimo meus baixos instintos ou desdenhar da minha amável animalidade, pelo contrário, até mesmo cultivo um primitivismo ideológico que tem me satisfeito. A libido, assim como a violência e o sonho, encarna-se logo ao fechar meus olhos, desde as primeiras fosfenas até a imagem mais fofa que posso conceber: uma xoxotinha rosada, vista por trás, em meio aquela linda bunda empinada. Ou até, vista de frente, “Tinha uma vagina no meio da mulher, tinha uma mulher no meio da vagina, tinha uma vagina no meio da vagina”.
4) Falando em sonetos velados [e você faz o seu], há muitas métricas alternativas [músicas abscônditas nas letras] por descobrir. Como no jazz e em tantos estilos métrico-musicais mais "livres" [aparência de liberdade] e sincopados. Ler poesia exige ouvido[-olho] absoluto[s]? [E não me venha falar de bardos cegos, pois que a voz também é olho...]
Almeja, mas não requer. O olhouvido ou o ouvidolho não são os sentidos, mas meros sensores pelos quais temos as experiências sensoriais, por isso sequer é essencial ter um olho ou ouvido para ver ou ouvir, em absoluto. Todos somos, em maior ou menor grau, sinestetas, pois ao mesmo tempo em que os sentidos se complementam, agem sinergicamente, produzindo o que conhecemos por sexto sentido. Igualmente, é preciso discernir os sentidos dos sentires. A palavra sentido é, entre outras coisas, um verbo no particípio. Quero dizer com isso que o mais importante é, na verdade, a memória, a lembrança daquilo sentida. Através da memória um Borges já cego compunha poesia ou um Beethoven já surdo compunha música. E sim, também os eunucos transam. Já ouviu falar em membro fantasma (e olha que não me refiro ao funcionalismo público)?
Alguém já sentiu a música como uma arquitetura em movimento, e a poesia como o uma metamorfose fotografada. Ambas são fantasmas oriundos do corpo da fala. Nasceram juntas e pouca gente há que duvide de que elas eram uma única entidade. Acho lógico. Não são as duas, dentre as clássicas belas artes a serem tidas como as mais espirituais? Acho, no mínimo, espirituoso. Por isso mais livres até do que a própria fala que, igual ao corpo, já é movimento e metamorfose. Mutatis mutandis, também o amor. Não é a toa que o tema mais recorrente da música e da poesia seja o amor. Suas naturezas mutantes se coadunam organicamente, por que o corpo ainda é pouco, não? Toda forma é mera crisálida. Por mais que eu me esmere em dizer algo o melhor possível, pretendo que isso apenas embale melhor o conteúdo. E se escrevo um verso em que o amor que nesses dias me dais é AIDS, por exemplo, não estou apenas a produzir som, aliterando susto e síncope no mero tom do anagrama, mas a ve-r-o-u-vir quando há, o que é sentido por trás. Aí mostro com quantos miaus se faz uma leoa.
Jamais fiz sequer um poema que se atenha aos metros convencionais, nunca me dou ao atrapalho de contar sílabas, o que busco é o produzir tanto sonoridades harmônicas quanto dissonantes ao versejar, que mesmo quando rimo não trato de hino. E até os músicos que mais me tocam: Zappa, Stravinsky, Hermeto, Piazzolla, Satie, Monk e Coltrane, sempre me deram mais a medida do que não vale a pena de escrever. Só me contento com o anódino inédito.
5) Quanto do que se cria [ou que você cria, nós criamos, eles criam] é pra fugir do Tédio? Você não pode/pôde se furtar ao "spleen baudelaireano"? Diga-me uma coisa: os vícios são fugas do Tédio? Escrever é um Vício? [As maiúsculas não são sacrossantas, mas empacotadoras de subespécies do que nomeiam, fique claro ao agnóstico...].
Tudo o que criamos, mesmo sendo impossível quantificar, serve de fármaco anti-monotonia muito menos a quem cria do que a quem somente aprecia. Já a melancolia... não é um ideal, mas um usual a que se chega pela via cordial. Considero-me um splénétique sim, mas só me concedo que o seja como um ator lacrimeja.
É o público que foge, o artista persegue.
Vícios são fugas da abstinência. Contra o tédio, buscai a experiência.
Escrever é um vício para aqueles que não aprenderam como usar o ponto final, pausa absoluta, justamente por não terem sabido iniciar suas obras com letra maiúscula.
Estréie bem Artaud e pare assim que Rimbaud. No poeta, o que se compreende entre o iniocaso de sua vida não é mais do que acessório ao público, e essencial para si; o contrário só é valido durante o overturend de sua arte.
6) De Neandertal até aqui, quanto evoluímos? E no gancho dessa pergunta: você crê em literatura-de-formação? Que autores ajudaram a (de)formar Davi Araújo?
Talvez por acaso, o topônimo Neandertal signifique "vale do homem novo". Apesar dessa velha espécie ter evoluído do “homem que sabe”, exatamente como nós, que somos o “homem que sabe que sabe”, ela provou ser muito mais evoluída, levando em conta a idéia de evolução que a nossa própria espécie tem, pois há quase trinta mil anos provou sua maior eficiência ao já conseguir atingir a tão almejada extinção, que nós, baldados os nossos esforços, não temos logrado.
Literatura de formação só existe a posteriori, na medida em que hoje posso mencionar com que literatura eu me fiz formar. Não se pode propor a priori quê livros devem e quê livros não devem formar um indivíduo. Só pedagogos pensam assim. O direito ao acesso a boa literatura é muito mais importante do que o acesso à educação, pois ler é mais importante do que estudar.
Minha formação literária foi com os 32 volumes da Enciclopédia Barsa, mais dois volumes de uma enciclopédia de medicina, além de algumas revistinhas de HQ. Não havia outros livros em casa. E não li outra coisa até os sete anos, quando o primeiro ano escolar certificou minha alfabetização. Aí lia uma coisa ou outra da biblioteca da escola, de vez em quando, além dos livros didáticos, tudo sem método, muito largado. Depois li a Bíblia. E então fui para os “livros infantis”: Alice nos País das Maravilhas, Moby Dick e Dom Quixote... e claro que não entendi muita coisa, mas me iniciaram em alguma coisa, pois no fim de um túnel de livros difíceis, decidi ser escritor quando li Memórias Póstumas de Brás Cubas, aos 13 anos; depois de ter lido O Processo, Crime e Castigo e O Vermelho e o Negro, pareceu uma coisa muito fácil. Eu sabia poder fazer. Aí acho que Pessoa, Wilde, Rimbaud e Nietzsche, me disseram que tipo de escritor queria ser, aos quinze. E o resto foi um caos estroboscópico de leituras do qual nunca mais saí: gregos, latinos, renascentistas, barrocos, românticos, realistas, simbolistas, vanguardistas, modernistas, beats, pós-modernos, mágicos-fantásticos-maravilhosos latino-americanos e marginais. Cheguei a passar fome alguns meses por ter gastado todo o meu dinheiro na formação de uma boa coleção pessoal. Autêntica bibliomania.
7) Babel e Caos [Kaos?] são lugares a serem visitados [quais pontos turísticos de todos os tempos], ou um convite a que nos civilizemos? Conhecendo o seu sarcasmo, reformulo e amplio: mais que pontos turísticos eventuais-e-eternos, Babel e Caos constituem o "tônus" [o "tom médio"] de toda a paisagem? A direção da Vida é a Entropia?
Uma e outra coisa. Por que não? A imaginação permite que todos os lugares reais e fictícios possam ser acessados e revisitados nos espaços arquitetônicos e paisagísticos por onde passamos; bem como todos os momentos históricos e míticos podem nos alcançar em qualquer quando que se nos presenteie, pois sempre estarão no passado como sempre estiveram no futuro. Nesse ínterim, o processo auto-civilizatório se transubstancia em auto-divinatório: advinhas o quem és no veio de quandonde vais. Se o mundo de agoraqui pode chegar a nunca acabar, imagine os demais. A vida deriva pelo labiríntico e infinito universo espaço-temporal que cabe em nossas cabecinhas. Nenhuma poesia vive fora de nós, aos quais ela se amarra qual e tal nós mesmos nos amarramos à vida. A arte exemplifica isso, o que qualquer um pode experimentar no cinema, suposta mídia total, como antes fora o teatro, além de outras mil e uma formas de contágio onírico, como o LSD e o jogo de xadrez, replicando desde a primeira recordação do primeiro plâncton até a última frustração do último übermensch.
8) Araújo: nós, poetas novos, nos lemos uns aos outros? Com quantos egos se faz um bom sarau?
Não posso uivar por toda a plêiade, então falo apenas por mim. Eu não me lembro de ter lido muitos livros de escritores surgidos desde os anos 80, brasileiros quase nada. Felizmente, percebe-se que a poesia em língua portuguesa de hoje é inclassificável. Apesar de ser, infelizmente, na maioria das vezes, descartável.
Tampouco tenho uma opinião formada sobre saraus, pois participei de poucos. No meu caso, tive conversas boas, mas ouvi poesia ruim. E achei até que faltava um mínimo de ego no pessoal. Rolando mais aquele lance comunitário superautoastral de um vomitar seus clichês sobre o outro que aguenta resig-nada-na-mente por púrpura auto-indulgência de ad-vinho barato e outros veneninhos de origem duvidosa ao som arrastado das chinelas de couro, farfalhar de barba na bata e batuque de bumba-meu-blues; isso quando o sarau é de mesa branca, pois quando não, mais parece uma convenção de vampiros byronistas sedentos por Sangue de Boi. Nunca fui a eventos de spoken word, mas já assisti em vídeos e noto uma forte influência do rap e concursos de improviso, aliados a tradicional declamação que, embora ainda me pareça a parte mais interessante, já não me interessa mais.
Entretanto, acompanho muitos blogs dedicados à literatura de poetas e prosadores que fazem a diferença, gente jovem e gostosa, inspirada e inspiradora. Alguns mantêm espaços um pouco feios ainda, mas em cujo texto testemunhamos sua qualidade inegável de masturbadores solitários da boa verve. Mais do que eu mesmo ser publicado em livro, acho que preferiria ter o poder de poder dar ao público o melhor dessa gente louca, meus amigos imaginários. A blogosfera é o melhor sarau.
9) O que o Concretismo te ensinou, enquanto "'artesania' da palavra"? Você gosta de poetas concretos ou neoconcretos, do tipo André Vallias?
O concretismo é a concretização das influências de seus mestres não-concretistas, gigantes como Eliot, Mallarmé, Joyce, Apollinaire, Maiakovski, Pound, nos quais eu também me inspiro muito. Mas essas obras não se concretizaram em mim, antes diria que desaguaram/desbarrancaram/ramificaram em mim. Compreende? Assimilei deles uma poética contrária, mais orgânica do que concreta, menos teórica e geométrica, que acho muito dura e pesada. Acho válido, mas não me toca. Porque acho que poesia não tem receita, não se faz poesia como se fosse bolo de festa; ela deve ser colhida como se fosse uma orquídea rara. Não consigo gostar de um constructo “perfeito” como uma mônada, busco catar algo “perfeito” como uma fruta.
Dentre os neo-concretos vejo coisas mais originais, como o Vallais ou outros que atuam com vídeo-poesia ou já no campo digital, mas ainda é apenas uma tese com mil antíteses para você mesmo cruzar e chegar numa síntese aleatória. Leitura participativa nem sempre é poesia. Já que é pra fazer poesia-conceito, faz logo como o estadunidense Kenneth Goldsmith, criador da UbuWeb, esse revira a nossa lógica pelo avesso, assina essa arte do lado de dentro e põe todos os seus livros de graça na rede. Esse sim sabe avacalhar com galhardia e constranger sem restrições.
Diferencio a poesia que gosto da que não gosto experimentando. A gente olha para ela, fala com os versos dela (con-versa), sai junto para passear e comer e beber. Até você não conseguir parar de pensar nela, sonhar com ela, e precisar demais mesmo. Aí você fica um pouco possessivo com ela, e já discutem muito... sabe como é que é. É preciso que você se doe, tem de haver uma imersão. Depois, no bar, viro aquela página e, pelas costas dela, te inquiro pela cumplicidade de também tê-la achado tão gostosa.
10) A escrita individual de cada um sempre morde a própria cauda [sendo, portanto, urobórica], ou fazemos, todos, uma escrita coletiva? E essa Escrita Coletiva recai nesse anel-mitema incontornável? Somos seres que nos re(in)corremos, sem avançarmos? [É claro que isso se alinha com a pergunta do Homem de Neandertal, e aqui está uma medida do mesmo anel; essa entrevista, Davi Araújo, visa ser um esboço de tese de filosofia...]
Concordo com ambas, pois não se excluem.
Acho paradoxal que a escrita, dentre um sem número de outros fenômenos que se assemelham a ela nisto, dê ao escriba essa impressão de que quando alcança a si mesmo, está no caminho certo. Isto porque talvez julguemos que assim nos bastamos, o que deve ser um grande engano. Já que, se não me equivoco, isso não apenas não leva a lugar nenhum, como faz com que nos consumamos a nós mesmos. Imagine a cobra a continuar se devorando: até onde ela consegue prosseguir? Quanto dela cabe em si mesma? Custará cagar no próprio estômago para chegar a ser apenas cabeça, para ser devorada por outra cabeça, e assim sucessivamente. Ou até mesmo o completo uninverso: cada um dos círculos que chegamos a ser pode formar uma corrente ou um anelídeo, que por sua vez formaria outras correntes ou outros anelídeos maiores ad nauseam. Parece algo vasto e infinito que cada reverso das muitas vidas unidas seja um universo. Em tese, ou isto é um esboço de mitologia ou fabricamos uma filosofia. Será? Seré! Foi um prazer.
Beijabraço textual
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