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25 de junho de 2007

Perfídiáfano

Eu vou te contar tudo o que está acontecendo.

Hoje quando acordei, a primeira coisa que fiz foi finalmente olhar umas fotos minhas de infância que estavam com a minha irmã, que as deixou comigo quando veio aqui. Eu ainda não as tinha visto. Em algumas delas estou naquela idade na qual não se pode saber se o bebê é menino ou menina, nem tampouco é possível reconhecer já muitos traços da aparência que tenho hoje. Pensei no que a tua avó me disse imediatamente após pensar aquilo. Uma das fotos trazia uma mulher meio de costas, com um bebê de colo, minha mãe e eu; mas também poderia ser a tua mãe e você. Agora penso que também poderia ser outra mãe com seu filho no passado e, você entenderá o porquê mais adiante, no futuro.

Um detalhe ao qual não dei muita importância na hora é que a minha mãe em algumas fotos parecia muito com uma das irmãs dela, uma que você conheceu; em outra foto ainda, meu pai parecia um tio irmão da minha mãe, cuja ex-mulher você conheceu também. Isto tem de certa forma conexão com o casamento.

Ao descer do quarto, antes de sair, minha mãe me contou que a minha prima (que você conheceu) vai se casar em dezembro do ano que vem, e que você e eu seríamos oportunamente convidados e, pensei comigo, provavelmente como padrinhos, novamente. Aqui eu já havia me dado conta que todos os fatos que ocorrem realmente guardam certa ligação entre si no tempo e no espaço, quase sobrenaturalmente... mas agora atordoado confesso que eu ainda não tinha uma real idéia do quanto. A minha vida assustadoramente faz parte de um esquema que eu julguei poder fingir ignorar, relacionado também com todo o trágico no mundo e os sentimentos que trago comigo desde criança, desde o ventre... ou desde (e até) onde? E o mais importante para mim: por quê?

Saí para procurar trabalho, um trabalho qualquer, com um único objetivo bem definido, e o pensamento intensamente voltado não para os mistérios da vida e as coisas inexplicáveis que acontecem no mundo, inclusive ruins. Mesmo conosco. Eu pensava em você e em como você estava pensando em mim. E era bom.

O dia passou rápido apesar de ter sido um tanto chato e desgastante. Imagino que o teu dia tenha passado bem devagar, que tenha feito muita coisa. É estranho?

Uns momentos daquelas horas andando pelas ruas estão me ocorrendo: de vez em quando, ao longo do dia, eu pensava em nomes, nomes de pessoas que conheço, bem próximas, no meu, nos dos amigos e amigas, no da família. Isto doía, sobretudo em alguns instantes em que o meu nome me ocorria.

Chegando em casa tive de agüentar da minha mãe uma conversa muito desgastante sobre deveres e responsabilidades, sobre comprometimento. Senti muita pressão, até porque ela usava argumentos com os quais, ela dizia, todos concordavam, sobretudo sobre mim e a minha atual condição; pior é que me falava sobre o eu que sempre fui, essencial, e um eu que eu deveria ser, ideal. Contava-me sobre coisas que ela, meu pai, minha irmã, meus amigos e até você pensavam sobre mim. Procurei não dar ouvidos, mas agora sei que algo disto entrou a ainda está em mim enquanto contra a minha vontade relembro.

Pensei muito em você, refugiando-me na idéia de nós dois juntos, felizes.

Então, você me telefonou, bem antes do que eu esperava. Nós nos falamos aquele tanto, que foi bem pouco; e o que falamos, bem estranho. É uma sensação que me tomava durante a ligação, não baseada nas palavras ditas, mas nas não ditas. A exceção poderia ter sido um momento em que eu ia dizer algo e não disse. Quer saber o que era? Logo mais adiante você finalmente saberá. Continue.

Saí pouco depois. Na rua, era como se tudo o que eu ouvisse começasse a fazer sentido quando interligado com as outras coisas, ou como se eu recomeçasse a perceber esses sentidos aos quais ainda não havia solucionado bem. Foi aí que vi o bebê no colo da mãe. Era como eu ou você, o rosto familiar e ao mesmo tempo indistinguível, também o da mãe, que atravessava apressada a rua.

Na viagem de volta, lembrei do sonho que tive a noite, e liguei os pontos:

Várias pessoas que conheço e conheci, algumas já mortas, e algumas que não reconheço (mas acho que não cheguei a conhecer ou ainda vou conhecer), caminhavam em minha direção, eram muitas e tinham uma aparência de que vinham para ajudar, apesar de causarem no fim tanta dor. Todas essas pessoas, cada uma delas, tinham no colo um bebê, o mesmo de antes, mesmo de sempre.

Cercaram-me como se me acolhessem e lembro-me de me sentir muito amparado.
Os bebês olhavam para mim como se estivem gostando de me ver, felizes até por isso embora não sorrissem de verdade, pareciam mais preocupados, o que me preocupou. Eu não acho que sabia que estava sonhando, acho que por isso foi tão real apesar de algo possivelmente impossível; talvez por isso nunca me lembre dos sonhos. Neste exato momento em que escrevo isto me vem a certeza de que é isso mesmo o que acontece, deve ser para eu não os interpretar como procuro fazer com o que vivo quando velo. Mas será que estou não estou dormindo agora? Parecia raciocinar como nunca enquanto sonhava; eu sei agora que sonhando vou a lugares e tempos, e são sempre o mesmo, onde e quando tudo acontece.

O que aconteceu foi que conheci aqueles bebês um a um e eram iguais na aparência, embora não exatamente a mesma pessoa. As pessoas que os traziam tinham cada uma um rosto diferente bem definido, mesmo as que eu não sabia ser; apesar disso, de sua aparência e, ao exato contrário dos bebês que traziam, pareciam ser a mesma pessoa, embora tivessem rostos de mulheres e de homens, jovens ou velhas. Eu percebia mais algum sentido oculto nisso, mas somente pude perceber o suficiente quando os bebês falaram pela primeira vez; todos o fizeram ao mesmo tempo, em uníssono, com suas vozes estridentes que agora mesmo parecem ainda ecoar na minha mente dizendo:

"Tem o coração seus motivos?
Eu e você não somos amados?
Por que nosso amor nos trai?"

Então agora eu sei o que muito daquilo quis dizer, no sonho e no resto do dia. Algumas pessoas para as quais minha mente se voltou hoje ao despertar eram traídos e outras traidores, e no sonho todas eram pessoas traídas que conheço. Entendi cada sensação deste dia, da minha vida toda, dos momentos com você e, sobretudo, àquilo que você disse e não disse ao telefone, todos os casamentos, inclusive o nosso. Talvez o bebê fosse eu mesmo, já que eu sonhava, mas podia ser cada possibilidade morta de você e eu trazermos à luz um novo ser. E por quê?

A pergunta que eles me fizeram já responde isto. Eu sei que você me traiu.

E assim o que acontece é que tudo se acaba, nada mais importando entre nós. Você fez o que fez, sem me contar nada do que está acontecendo. Não sei como, quando, com quem ou de que forma foi; se foi bom ou ruim, fácil ou difícil, se gostou ou não. Aconteceu, não há retorno. Sinto que foi hoje, talvez enquanto escrevo isto, agora. Você terá tido motivos que não sei responder. É impossível não te perguntar e é tudo o que nós ainda queremos saber, eu e o sonho que tive.
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Meu amor, por quê?
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