Piso dentro dessa paranóia e o reino inteiro arde em meus olhos quando acendo a luz.
Metade dos quinze pedreiros guilhotinados volta para o cândido céu de azul e neve madura.
Mas a obra em fúria continua de cima para baixo já que de tão raso o teto só há longe.
Temos vertigem o bastante para mim e o gordo rei xadrez que se joga uma casa por vez.
Sou novo, belo e forte. Sou o que eu quiser ser e tudo posso naquilo que se estabelece.
Estou de frente para o meu lado, parecendo que o castelo vem rubro em minha direção.
Tiro da cabeça uma toalha e o toureio. Passa espiralado aos gritos de “olé” dos não-numes.
Fantasia fétida, de pedra mesmo, merda de dragão. É de um bonito dos mais grandes.
Tem no meio um roseiral em chamas perfumadas e, em baixo, sabe-se de árvores cujas tranças-raízes
se tocam comunicantes na superfície, alertando-se em tempo de fugirem de tudo o que não é iminente;
e, o que é muito natural, modernos bobos ao redor do que é tudo. Não? Vai às mil maravilhas o restauro, informa desde o futuro uma propaganda rupestre, daquela indústria ideal que já fora a menos finita fortificação de que se tem lembrança.
O engenheiro, que por hobby faz filosofias, sai para almoçar quando chego ou me evita;
vai agora quente e apetitoso na garupa do cavaleiro negro, ser entregue à senhora pizza,
as bordas de ouro inca, emoldurando a circunferência meia banguela, meia burguesa.
Um acidente inesperado os atrapalha, e acabam por despencar da minha orelha direita;
mas se dou de ombros é porque por coincidência não os conhecia e, simultaneamente, por ter muita caspa. E por mais normal que isso possa parecer,
tive fome quando meio dia.
Escalo a flor mais baixa e me estendo deitado sobre a maior de suas delicadas pétalas,
para, glutão, sorver o pólen. Não sem antes lutar contra um grupo terrorista de abelhas muçulmanas com planos maniqueístas de “bem me quer, mal me quer” e eu “foda-se”.
Foram três-vírgula-catorze rounds do meu mais puro fundamentalismo contra os heróis.
Depois a sobremesa sem pressa e o café expresso, cem por cento integrais, é lógico.
E então um repouso necessário para reatrelar o esqueleto na alma, que dura.
Estão reprisando o tédio no canal cinco, com intervalos comerciais e ainda dublado em ornitorrinquês.
Não é o mundo do imediato? Faço de conta que entendo tudo o que vejo,
apenas para ser do contra. É uma era que se ainda não foi, será desistida. Sei-o, saco!
Como não desconfiar de tantos tempos instantâneos e lugares logo ali? Refugos fugazes.
Em poder de um remoto controle sobre o que me entra pelas vistas, deixo-me possuir.
Vendido, vou às últimas consequências dos meus atos falhos, subliminarmente mental,
sedentário sem sequer piscar, até que me dou por ligado àqueles telefones sem fundos.
Então passo a tarde em busca do fantástico, a visitar bibliotecas, museus e zoológicos. Desconfiado,
descortino números e ingresso no espetacular: esquinas de ângulos retos,
chãos aprumados pelos ires e vires do devir, tragédias aéreas e velórios fosforescentes,
definições de amor de dicionário, conexão rápida e segura como um genital plastificado,
a cura para a ruga, a fuga para o nunca, águas de colônia, colônias de férias, voto nulo, as casas próprias e os carros usados, sorteios milionários com dez chances de ganhar,
tanques de pesca e diversões eletrônicas, viagens parceladas, sucessos de bilheteria,
todas as igrejas do deus único funcionando trinta horas por dia. A vida não acontecendo.
Não sei nada disso de cor, digo-o cordialmente. Tudo que é caro demais desmascarado.
É obra de mão de barata, massa de manobra pacata. Consumir é comparecer. Faça isto! Venha conosco! Antes de se matar experimente fumar pedra e saltar sem pára-quedas!
Um lê: o fim da sociedade é a felicidade comum. Os outros aplaudem felizes. É o fim.
Cópias do que apenas parece original, nenhuma metamorfose e nem defeitos especiais.
Sonha-se em série na velocidade do verossímil. Supersim... megaé... hiperjá. Por que não?
É quando quebro a máquina na quina da queda. E apenas não vomito o que não comi.
Pelo meu hálito ruim demais se recomenda aos nobres limparem muito bem os narizes.
Aos plebeus já não se recomenda coisa alguma, por já não serem medievais o suficiente.
Há tecnologias como magias. Várias parafernálias ferrosas com estrondos silenciadores.
Precipito-me em câmera lenta. Vou indo andar de pé, há passos e giro o caminho-verbo.
Distancio-me dos cansativos trabalhos, que deixo ao léu aberto do próprio andamento.
O céu franze a testa em tempestade sobre mim e sobre o que é mais telúrico sob mim.
Rendo culto úmido aos campos cultivados pelos milhões de minhocas que me saúdam,
sem que eu saiba diferenciar se o fazem com a boca ou o cu. E é uma dúvida recíproca.
A paisagem é tão salutar que até tem certo ar de oxigênio. Intangível, porém tragável.
Tanto que, de repente, de forma estranha chego a respirar quase que involuntariamente.
Um gesto sutilíssimo que não passa despercebido por ela que passa: a mulher-magenta.
Está vestida apenas com a poeira da vinda, os cabelos se embaraçando no vento, linda.
Ser de carne, muita. Reconheço em sua mirada sanguinolenta o dom de tocar cachimbo.
Veio de não sei quando até o onde exato. Sou ali entre ela, que claramente se aproxima,
e a sombra que cresce atrás de mim a cada passo seu. Atrás de mim, andei quilômetros.
Com olhos novos a cada piscada, ela pisa displicente sobre o que ainda nos separava.
Aprofundando-se em meu espírito, acha graça por eu me perder em seu pequeno sorriso.
Toma-me pela mão de escrever, que lava com as lágrimas mais quentes de carinho e dó.
Não se pronuncia, mas cala em mim. Corta-me os dois dedos de prosa e, sem fazer doer, tampa meus ouvidos com eles. Então empunha seu instrumento,
um grande cachimbo.
Preenche-o com suas grossas sobrancelhas que um raio mergulha do alto para acender.
Traga com demora a mais longa nota e assopra no ar uma turva melodia esfumaçada,
que apenas vejo. E logo o entorno enlouquece e toma as cores daquele som, as nuvens, o sol e o céu.
Faz treva com intensidade e estamos sós. Beija-me então, sem paixão, pois tampouco tem língua.
Toda a construção em andamento resumia-se à minha ereção,
que ato contínuo ela afaga para introduzir em si, com a delícia morna daquela sucção.
Há então os movimentos, para ela e para mim, de pé e sobre o chão. Até o improvável,
quando todo o corpo da mulher-magenta é ejaculado para dentro do meu sexo atônito.
Mais impossível ainda se dá quando, ao tomar meu próprio pulso, já agora dobrado,
percebo não estar mais sozinho. Destapo os ouvidos e ouço-a, ríspida, dizer desde o meu ser:
“não ouse morrer, pois nascerá de novo!” Depois do que a sua voz apenas silenciou,
pelas próximas milhões de horas esparsas em que envelheci em companhia do nada,
escrevendo este relato, mentalmente. “Aprisione-me fora de mim”, meu último desejo,
era a frase que dava início ao término disto aqui, uma confissão de culpa derradeira.
Para só em seguida dar-se a verdadeira perda de contato com qualquer das realidades,
inclusive com aquelas das quais ainda me orgulhava um pouco, apesar de tudo. Era um erro.
Aconteceu que, por falta de outra saída, fui obrigado a recorrer àquilo ainda em mim,
que em seu egoísmo encarnava tudo ao que eu era mesmo indissoluvelmente suscetível.
E afinal a voz já então velha, sem antes me chamar, apenas a atender o meu eu terminal,
ressurgiu desde meu interior nunca esquecido e já arrependido a me dizer “siga-me”.
Então ando trôpego tateando o vazio, tateandando através do que já não era eu em mim,
na absoluta escuridão a lutar contra o luto que já fui por uma chance além do alcance,
em meio a incerteza de cada penúltimo e último passo adiante, só no meu próprio plano, humano, maníaco. Até que um medo por não estar só outra vez
me levou de novo ali.
Àquela dúvida, de infinitos pontos finais. E a desconfiar até dos meus pensamentos,
pensei estar sendo seguido. Foi quando bati a cabeça contra algum vazio mais sólido,
tão denso de nada quanto o resto dali, e igualmente tenebroso. Eu terminava bem ali. Nada me restava. Sem qualquer vontade que não fosse um ato de auto-misericórdia,
invoco o que me resta de vida com a intenção de expulsar da cabeça essa mesma vida.
E, por um instante ao longo do gesto fatal, duro toda uma nova juventude e há esperança.
Uma morte completa, mera aniquilação do ser que investe de cabeça contra si mesmo.
Encontrei meu fim sem meios de não recomeçar, pois, assim que piso lá, ascendo à luz.
A cidade crua nessa nossa noite inteira
menos a sinfonia de máquinas de lá
é já de um outro lado azul da porta
onde toda urbanidade está flanada
pra que aqui quietos caibamos calmos
mas pelo vidro e sacada há suicídios
e cintila a lua viva na ponta do olhar
como se desse tìtulo ao noturno da rua
pois no ar rouco se gritam gargantas
qual a propaganda que pisca a própria luz
com a sorte de calor que sua um céu
e cala mil línguas de que nunca se falou
em um livro louco que nos recitaria em chamas
pois agora onde somos sempre mais dois
há apenas o que é tao livre e ama
entre paredes tortas de um nosso dobro
debaixo de um teto todo de andar
por sobre os toscos tacos acarpetados
em que deitada jaz a nossa cama
e vaos vamos nela ao gozo ou sonho
invadidos de um no outro morar
pois nos cruza um país de estrangeiros
e jamais viajamos sem gestos genitais
ainda menos quando o luar se nubla
pois com paixao nova o tesao é crescente
que mingue o poema que a musa é nua cheia