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16 de setembro de 2007

A Indiscleta

Em 1988 eu tinha oito anos de idade. O meu pai queria mais, queria poder, então se mudou com a família para uma cidade com então cerca de sete mil habitantes apenas, chama Oriente, perto de Marília, no Noroeste paulista.
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Nessa cidadezinha a maioria das pessoas sobreviviam do corte da cana de açúcar ou do trabalho na usina; era praticamente obrigatório freqüentar a igreja onde mal cabiam; quase todo mundo falava errado e eram muito indiscretos.
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As segundas intenções que tinha meu pai era nos oferecer mais segurança e qualidade de vida, sendo a primeira candidatar-se a vereador e ter um bom salário. Lá podíamos ter uma casa grande e bonita, como em São Paulo apenas se vê nos bairros mais nobres, e assim lá vivíamos “muito bem, abrigado”. E foi nesse ínterim, meu pseudo-apogeu econômico, que ganhei a minha primeira bicicleta (de duas rodas), era uma Caloi aro 16 vermelha, cor da minha carne. Ainda me lembro das palavras do meu velho, olhando o horizonte desde o alto da ladeira, falando cheio de orgulho, com a mão no meu ombro:
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- A cidade é toda tua... vá pegar!
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E lá me fui eu. Ali de fato eu teria a possibilidade de, mesmo com tão pouca idade, andar bem livre por onde quisesse; o que de fato fiz pelos próximos dois anos, para qualquer lugar para onde eu fosse, eu ia pedalando.
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Saía cedo de manhã com um galão de cinco litros pendurado no guidão para buscar leite recém chegado das fazendas, no quintal dessa casa havia uma imensa jabuticabeira, onde eu trepava logo cedo enquanto andava a fila do leite, para tomar meu negro desjejum, lembro que a mulher que me atendia parecia-se com aquela do rótulo de leite condensado com um balde na cabeça, aí continuava, voltando para casa dificultosamente com tanto sobrepeso.
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Depois ia para a escola onde se enfileiravam estacionadas centenas de outras pequenas magrelas, no intervalo ou quando ia ao banheiro, sempre passava por ela conferindo se nenhum menino idiota tinha aprontado alguma, às vezes alguém a derrubava, entortava o guidão ou roubava alguma parte. Tinha vezes que eu arranjava alguma encrenca com algum “fortão” que dizia que me “pegaria na saída”, aí todos ficavam comentando “hoje vai ter pau”, e ficavam me esperando sair pelo portão principal, em roda a gritar como índios; eu escapava pulando o portão dos fundos... a bicicletinha não era mesmo pesada, nem para mim. Ia me refugiar no estádio de futebol da cidade, onde eu consegui entrar passando por debaixo de um dos portões, rastejando, a bicicleta arrastando depois de mim. Era um estádio pequeno e bonitinho, ficava vazio e silencioso.
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Aí depois de passado o período de saída, eu passava no centro da cidade para tomar um sorvete de três bolas escondido da minha mãe (“sobremesa antes do almoço não pode”, ela dizia), com essa idade eu comecei a receber mesada, lembro que era sempre uma nota de mil cruzados, “milão”, como se dizia ali - dois anos depois, ainda não teríamos muito mais dinheiro, só um dinheiro diferente, e minha mesada passaria a ser ainda a mesma, só que em cruzados novos, a única promoção real era mudar da efígie do Rui Barbosa para a do Machado de Assis -, com a qual até que ainda se comprava alguma coisa, acho que hoje valeria uns dez reais. Então passava em casa para almoçar, sempre a pedalar; trocava o uniforme por outra roupa e saía de novo.
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Ia cabular a aula de religião do curso de catecismo que me obrigavam a fazer tão novo... ou ficava lendo algo na biblioteca (eu ainda não tinha meus próprios livros, ler não foi um hábito adquirido em casa), ou ia fazer alguma outra travessura para os lados de bairros mais distantes, onde não haviam ruas asfaltadas e era mais emocionante descer com a bici as ladeiras; as tais travessuras eram muito variadas e incluíam me esfregar no mato com alguma outra criança, menina ou menino, naquele esquema “mostra o teu que eu mostro o meu”, rolavam altos beijos, esfregações e troca-trocas (mas sem penetração de fato), às vezes me flagravam, o que me rendeu desde cedo a má fama de “menino besteirento”; podia-se parar a bicicleta em qualquer canto para brincar, eu brincava muito entre plantações de milho, em represas e cachoeiras, em grandes montes de areia em frente de casas em construção, invadia essas mesmas casas ainda vazias, subia em árvores muito altas, jogava muita bola de gude, ia caminhar sobre os dormentes da linha do trem que passava por lá, jogava pedras para dentro dos vagões quando passava barulhento. Eu era um menino hiperativo e um tanto indiscreto. E dessa forma eu passava o tempo antes da hora de pedalar de volta para casa com o por do sol, para deixar a amiga bicicleta descansar até o dia seguinte; juntos formávamos uma parceria vertebrada, às vezes o garoto sendo metálico, a metade formando um animal fantástico sobre a outra metade, bicicleta de carne. Para mim os dias serviam para isso, e a bici era a minha companheira inseparável, dei-lhe o nome de Indiscleta.
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Mas todo esse flash back foi na verdade um flash forward já que, do ponto onde estava quando comecei a digredir, tratava-se de avançar no tempo antecipando o que eu viria a fazer com a minha bicicleta nos dois anos que ali morei, muito feliz; antes de meu pai perder a eleição e se entediar daquilo tudo ali, e de voltarmos no final de 1989 para morar novamente em São Paulo.
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Então, retomando, meu pai havia dito para eu ir pegar a cidade que agora era minha, e eu fui, ladeira a baixo, em alta velocidade. Eu só não sabia ainda conduzir direito, e no final da rua havia uma bifurcação em “T”, ou virava para a direita ou para a esquerda... mas não pude me decidir em tempo. Foi uma trombada daquelas de encontro à guia alta da calçada... eu voei para frente com força, caindo longe... a Indiscleta subiu bem alto e caiu sobre mim. Resultado: além do vexame... a dor; quebrei a clavícula esquerda, a cidade foi quem me pegou; e então eu tive mesmo de conhecer tudo a pé durante aqueles primeiros meses, antes de me deixarem poder enfim pedalar a Indiscleta de novo.