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6 de agosto de 2007

Pã Americano

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Adentraram o ambiente como a um palco mítico, de revelação, esquecimento e paixão, distantes mais uma vez do resto da arquetípica fauna de que nessas ocasiões se colocam a parte. Arandelas iluminavam o quarto indiretamente, nenhum dos dois queria falar, ela tinha acabado de ligar o chuveiro e ficava andando pelo quarto ainda vestida como se desfilasse, ao som do serialismo atonal. No mesmo velho Hotel Pan-americano ele havia escrito infinitos poemas sobre a finitude, deitado sobre a mesma cama sobre a qual agora estava sentado a pensar atento ao que via e ouvia e mais que tudo como sentia (e como, ao mesmo tempo, sentia o que via e ouvia e como, também, sentia através do que via e ouvia) a arte, o amor; a arte de amar, como se ainda a primeira também fosse a última vez, em hotéis com chuveiro, cama e Stravinsky. Transcorrido o tempo do qual ele extraiu o resumo (e a escrita dele acima) do pensamento acima (do qual o escrito acima é um resumo), o espaço de encontro dos olhos dos dois foi sob os batentes da porta do banheiro... já seus ouvidos ainda hesitavam (enquanto suas cordas vocais hesitavam) a se encontrar. Ainda ele aguardava para ver o que ela viria a fazer (para só depois escrever isto aqui), pois ele (um tanto por timidez, outro por esquizofrenia) sou (eu... percebeu?) um outro.
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Distraí-me escrevendo isto ao final da música, logo após Syrinx começar a andar em minha direção lentamente, cambaleando os calcanhares em espiral sobre o carpete. Eu estava de costas, aumentando o volume do rádio, ela me tocou o ombro quando a voz do saxofone começou a pairar sobre nós como pássaro de fogo, meu coração batia de improviso em compassos mais do que improváveis; ela ficou me olhando, nua ao lado da cama, calada e ainda pingando, a toalha em turbante. Nossos olhos resvalaram furtivamente uns nos outros quando olhei para ela, que desviou o olhar para a calcinha muito sexy muito pequena muito vermelha que usamos um pouco na noite retrasada, e para a calcinha preta pequena sexy muito muito muito da véspera. Lembrava-me sem saber porquê, dos dias do meio de fevereiro, lembrava-me dela nessa época, quando sei que de fato não a conhecia, quando, embora continuássemos circularmente nos polarizando, tínhamos uma situação inversa: ela levava uma certa vantagem sobre mim, que no entanto a perseguia sem sucesso. Desde anteontem ela me rodeia e me enreda como uma pequena lua saturniana, posição que reputo como mais cômoda e que desta feita confesso preferir.
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Olhou-me então desviar o olhar negro que tinha nela para "O Arranca Corações" sobre o criado mudo, na verdade olhando o próprio móvel e não o livro, ambos mudos, nós quatro calados menos os flautins que nos sopravam o que fazer. Quando vi, ela olhava (blue noted look) daqui para lá de outro para um lado e tal e etc, procurando por algo... disse “cadê teus cigarros?”, ao que respondi sem falar, tirando o maço de um lance de sorte jamais abolirá o acaso de dentro do bolso, pondo-os sobre sua mão estendida, que fez certa questão de tocar levemente a minha. Quando, “você fuma?”, perguntei. Então “não, não”, ela disse e “não se preocupe, não vou jogá-los pela janela”; para onde se dirigiu acendendo o bastãozinho branco com dois palitos em uma tentativa. O cheiro de fósforo e tabaco que impregnaram a suíte de doce e de acre, parecia mesmo que era o cheiro da melodia que eu sentia vir de sua boca através do cigarro que fumava amparando-o como instrumento musical, soando algo entre jasmim e lilás, provavelmente o trompete.
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Levantei-me contornando a cama e fui até ela, já agora vestida, vi que olhava para a Rua Augusta bem em frente, sob fina garoa, eternamente movimentada no néon daquela hora. Ela notou minha intenção de pegar meus óculos sobre o outro criado mudo, dissuadindo-me com um beijo na boca, de gosto brutal, ao qual correspondi; ela notou minha ereção por estar ficando brutalmente excitado, a qual ela correspondeu levando minha mão pela mão para passear no seu sexo... procuraria sentir na ninfeta a ninfa, pequenos lábios sob um beijo imenso que me faria encontrar a mim mesmo ao perder os sentidos. Por baixo da saia entrei por cima da calcinha; A terceira! A última? Langerie pequenina cuja cor saberia a seguir, sexy como sempre foi. Não sei se posso dizer que comprovamos sua eficiência acessória ao ato, sua possível mas improvável necessidade em essência, algo que sai de cena para deixar algo entrar. Tudo foi muito rápido, como um fuga, em contraponto.
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A música havia cessado quando acordei, tinha muito cabelo dela em minha mão, senti-me bem lambuzado sob os lençóis, senti o peito e as costas arranhados quase como se pudesse ouví-los cicatrizar; não vi nenhuma das três calcinhas sobre o aparador, não a via mas havia algo, nunca foi diferente... vi no espelho o recado em batom lilás (talvez a cor da última peça íntima?), a caligrafia mal feita feito bom grego arcadiano, bem mau de decifrar, com as duas letras iguais da palavra “local” incidindo sobre a minha cara como curtos chifres diabólicos e, como sátira mordaz, terminava por não assinar, assassinando meu rosto refletido na página improvisada com um “risos, risos” abreviado. Encontrava-me sozinho de novo, perdido em minha companhia; hospedado na gruta do hotel ou escondido na suíte da montanha. Sentei-me sobre a cama num tombo atrás de mim, perdido ou pior, atrapalhado; acionei sem intenção o controle remoto do televisor onde o comentarista anunciava em máximo volume “el final de los Juegos Pan-americanos 2007!”. Desliguei. Olhei para a cama e foi com se tivesse uma visão dela ainda dormindo, miragem em meio ao mormaço de silêncio. Meio torta, com o quadril arrebitado e um seio e uma perna à mostra. Liguei de novo o rádio e ela acordava, espreguiçando-se exausta da minha imaginação, afagou os próprios cabelos alvoroçados e me disse “temi você como todos aqueles que necessitavam atravessar as florestas à noite, pois as trevas e a solidão da travessia os predispunham a pavores súbitos, desprovidos de qualquer causa aparente, a você atribuídos!”. Fui tomado então do mesmo pânico, num ímpeto trágico cocei as orelhas peludas e vesti o jeans sobre as pernas caprinas, saindo correndo atrás daquela que se recusa com desdém a me amar assim como sou. Atravessei apaixonado os corredores como se fossem vales, correndo como se dançasse, buscando como se caçasse ainda uma vez mais a minha ninfeta, Syrinx.
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Surpreso, alcancei-a já tão diferente, como se já se tivesse outra forma irreconhecível, tomando o seu desjejum sentada placidamente sobre a cadeira de bambu. Sentei-me de frente para ela e fiquei parado observando-a comer com delícia um tanto voluptuosa seu pedaço de pão previamente molhado na xícara, deidade intangível entregue a segurança frugal de seu disfarce de comensal, insular como o farelo boiando no chá. Incontinente em mim mesmo pergunto se “eu vou te ver de novo?”, “digo, se não me lembro não quer dizer que foi ruim”, “você, afinal, gostou?”. Ela fez de morada uma pausa demorada antes de engolir, e outra depois, para dizer me fitando de esguelha “não faço questão de lembrar de mais nada além daquilo que você esqueceu... já estamos no tempo em que as coisas já deveriam estar de volta aos seus lugares... mas essas inversões de papéis sempre são arriscadas, eu não deveria ter conseguido te alcançar, nunca!”. “Eu gostaria de entender”, disse eu a ela, que se riu divertida comigo. Falou “bebemos pouco vinho dessa vez, apesar da minha ressaca, talvez esse tenha sido o problema... como bons pagãos que somos deveríamos não nos importar, mas a natureza e o universo são o espaço do tempo... assim, deveríamos nos esquecer de novo”. E ainda continuou como se estivesse falando com outro alguém, não um simples mortal como eu, “...o resto, teu nome, endereço, telefone, desconheço... é tudo o que sei... fugindo de fugir de você, escondi-me em teus braços”. Ela se levantou com o canto da boca ainda sujo de pão, passou a mão maliciosa pela minha barbicha, encaminhando-se para a porta sem se despedir, comigo inerte no mesmo lugar parado no tempo. Quando ela se voltou para me convidar, na verdade para confirmar nosso encontro, assim “mesmo lugar, mesma hora?’, e eu, “quando? hoje? amanhã?”. Ela deu uma gargalhada e se foi sem olhar para trás, para sempre como nunca.
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Achei que poderia reencontrá-la para novos festivais de aproximação e carnaval e recusa, mas não. Eu estive daí para sempre, voltando dia a dia ao mesmo local... e reescrevo a mesma história em prosa e ao inverso; mas como voltar àquela mesma hora, se aquela hora já passou? O pânico ainda hora a hora me assola, por saber que mesmo sem lembrar jamais esquecerei de ter conseguido alcançá-la, invejoso dele, o único que a pôde reencontrar no onde e quando predeterminados circularmente, e que ao menos a pode ver e ouvir ao outra vez fugir dele; estímulo que me falta, para mim já mítico estímulo, como somente o terá ele em sua fixação de perseguidor.
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Era


O tempo da ação do tempo
Sempre leva uma eternidade
Mas já nuncamente jamais

O livro mofa
sobre o assoalho estalando
O portão enferruja
em meio à parede descascando

Ainda um dia quem sabe
Chega-se de novo a antiga idade
História juvenil da impermanência

A fruta apodrece
como o pão embolorando
A faca desfia
pelo relógio atrasando

Esquecendo a memória
A desatualizar o contemporâneo
Desempilhamos as épocas