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28 de agosto de 2007

Tutti Fucking Frutti

Sim nós damos muita banana
Mais algum mofado morango
Desengomamos toda tangerina
Peésse aveludado de pêssego

Temos fome de carambola
Não deixamos para depois cajá
Com amor namoramos amora
Antes que engavetemos maracujá
Agudamente recordamos graviola
Enérgicos como é o guaraná

Damos pano para manga
É mesmo o bicho a goiaba
Revestimos pi com pitanga
Com um olho de jabuticaba

Sempre alcanças se és pêra
Entres nessa ou te ponhas açaí
Leve o peso no pescoço a melancia
Inesperadamente alguém nêspera
Com brim dessa cor assim caqui
Som da capa do livro que lichia

Não proibimos nenhuma maçã
Acastanhamos travas de caju
Como acolhemos bem a romã
Tal qual se fosse um cupuaçu

Amuleta-nos o figo
Esbagaçamos laranja
Alberga-nos damasco
Desescrotamos cada kiwi
Barbeia-nos a toranja
Problematizamos abacaxi

Adoramos o melzinho do melão
O disco azulado é um outro araçá
Azedinho e doce como é um limão
Catado do chão de sombra de cajá
Tendo de ser bem macho o mamão
Para encarar algo como o jatobá

Dengoso é o dendê
Lá do cerrado pequi
Laureado o abacate
De muita fibra o buriti

Esse cacho que se advinha é de uva
Proeminente a pequenina framboesa
Pulsa como a compulsão da jujuba
É um deixe-a ou ame-a de ameixa
Fruteira onde cabe até a macaúba
No topo deveria ter vindo a cereja

25 de agosto de 2007

Córrego da Paciência

Rio morto
Que corre no fim da minha rua
É beco escuro mesmo sob a lua

As suas águas jazem ali abandonadas
Flagram de hora em hora um pior humor
As fábricas são tantas nele ancoradas
Que cada dia é navegado por uma cor

Diluindo ele corre clamando
As naturezas da poluição
Fluindo reflete se esperando
Os dias melhores virão

Nicho do desmemorio
De todo entulho que se expande
Do meu beco ri acho pois é contrário
Da infeliz cidade que tão grande
Sobrevive no desvario

Fluindo eu sigo proclamando
As amizades da solidão
Diluindo penso se desesperando
As noites durante serão

A sujeira dessas idéias marginalizadas
Afunda a nau frágil afogando o meu fragor
As enchentes em meio às gargalhadas
Embarco no papel boiando desta minha dor

Desfaleço a vida que me passa
E eu que assim achando graça
Rio morto

23 de agosto de 2007

Mala Se Alça


Sem contar a roupa do corpo, com leve pesar sem peso levar, cumpridas calças compridas, compradas para a viagem; uma camisetinha para cada cor, mapas e cuequinhas em flor, dinheiro de lá que de cá comprei, chapéu e touca e boné, meia dúzia de meias e três tristes trocas; pares de sapatos seguindo de tênis, habilitação e passaporte e paaéssareagem; dois livros um de prosa e um diverso, uma vermelha e quatro pretas canetas, mais duzentas páginas menos esta.

19 de agosto de 2007

Realismo Mágico


Pela superstição maravilhosa
Contra a fantasia tecnológica
Contra a fantasia supersticiosa
Pela tecnologia fantástica

Sonho em que me emaranho
Como e regurgito ergo sum
O cotidiano é que é estranho
Irreal o que há de mais comum

Uma ficção especulativa
Onde o tempo é sobrenatural
Outra história alternativa
Quando espaço é mínimo e vital

O intuitivo sem explicação
A verdade cíclica não linear
A selva de nossa imaginação
O verbo latinamericanizar
.

Instrumental

I
Trompete


De uma alquimia controlada
Da nobre família dos metais
Distâncias que o éter percorre

Pressão e velocidade musicada
Por puras cromaticidades distais
Pela expulsão de espíritos morre

Nos graves a sonoridade é sombria
Nos médios está sempre a brilhar
Nas agudas os sons são estridentes

Seu destino é de encantar e é de guia
Sua alma é o sopro de vida a se tocar
Sendo respirar e expressar imanentes

II
Violoncelo

Grande ele reina sobre um só pé
Inscrito absoluto na clave de Fá

Dó que a compaixão faz inspirar
Sol por princípio em nosso sistema
Ré que nos faz outra vez recuar
Lá onde algures estará o problema

Senta-se com ele para ouvirmos até
A história grave mais bela que há

III
Cuíca


Rugido de leão
Nunca percutida
É de percussão
A sua mordida

Quanto mais perto do centro
mais agudo o som que produz
O segredo deve estar dentro
pela comunicação dos exus

Soluça ou dá grunhidos
Membranofone de fricção
Guincha ou dá gemidos
O instrumento de fruição

IV
Acordeão


Sinfonia solitária
A sanfona é uma autarquia
Orquestra de um instrumentista só
Com pulmão de madrepérola
Com mi com fá com si com dó
Quero ré quero sol quero lá
Órgão quintessencial
Dedilhado que soa insano
Laboratório do som da idéia
Um iôiô tão musical
Com castelos por dentro
Harmônica uma tal colméia
Musculação de quem toca
Delicado abraço descomunal
Maravilhoso engenho por centro
Corcunda assim seu tocador
Carrega no peito o piano
Nove dedos em execução dolorosa
Jardim sonoro de qualquer cor
Na engrenagem misteriosa
Os sons que para cima descem
Os sons que para baixo sobem

18 de agosto de 2007

O Relógio

Olho da profecia
Auréola da eternidade
Carrossel de horas
Compasso da maturidade
Bússola da pressa
Aliança da secularidade
Ciranda da espera
Conta-giros da ansiedade
Ciclo da precipitação
Circunferência da oportunidade
Arena da paciência
Circuito da transitoriedade

17 de agosto de 2007

A Vaca Que Tosse


Impossível é não querer saber onde começa o ser e termina o mal de ser humano assim cromossomos iguais perante a feiúra bem feita da paisagem como melhor lhes aprouver um membro da família todos estaremos do barco a derivar do leite de amnésia que se toma cá lá dá o que falar a quem não vê coração mas vê a coroa de louros do bardo mas não falho geográfico então pode dizer ao povo que a voz de Deus é emprestada para quem dá união aos homens e mulheres de voa bondade tudo nessa vida e volta sem cessar de muito assoprar a ferida aberta a temporada no inferno são os outrossim nau do sexo pederasta pé noite a foragido da justiça dos nomes impróprios que se dão as mãos e vão passear no bosque a vida é feita para e recomeça melhor as tuas palavras isso são modos moinhos de ventos da mancha-cha-chá para dois por favor com um torrãozinho de sal da terra como o centro do universo do que se disse antes de mais nada para não se afogar nesse rio a beça da política imperialista dos melhores do ano bissexto de lixo que está pouco se sabe a respeito do cérebro ainda que tardia a dia para logo mais depois do almoço muito bonito que me convidou para jantares estrela de primeira grandeza no coração de escorpião de boiadeiro rodeando o planeta da tua avó esclerosada macaco no seu galho e cebolas para temperar condicionado sincronizado vizinho sempre é melhor do que dois voando meio desligado não tosse engasgado ainda muge é o ponto onde está o prazer em conhecer ou não será que chove hoje é o dia do teu aniversário bem as panelas e eles não se entendem nunca saio de casa sem documento tamanho do mundo da lua acrescente pimenta a gosto de você como você é um fingidor que deveras sente-se aí que o doutor já vai trabalhar vagabunda mole em pedra durante o intervalo o que como pode um peixe vivo viver e não ter a vergonha de zepelim constitucionalidade dos metais prefiro o saxofone e endereço por escrito certo por linhas portas da percepção mais pura da palavra a terra e colhe o fruto proibido conversões à esquerda de quem vê entre livre e desimpedido de casamento ao pai ao filho ao espírito de porco se cria muito se copia a coruja escura o vício da bebedeira nem beira o absurdo mudo de humor conforme a música para meus esquecimentos com que construo a casa da sogra de língua de fora o tempo da brilhantina de leite para o gato não morreu sou como sou caipira pira porra da polícia militar no movimento estudantil é o irmão da minha mãe da mula ulalá bamba na corda no pescoço o saco mais rápido do que você

16 de agosto de 2007

Mnemônica

Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá
Um Sorvete mais meia torta quadrada
Vovô Quadrado e Vovó Quadrado deram Duas Atrás do Sofá
Hércules Negão Arranca Kriptonita de Xereca Remunerada

Vamos fazer amor a dois
Prometa que Ana telefona
Soninha, só você tem aquilo tudo ao quadrado para dividir por nós dois
Senta no A, coça no B; senta no B, coça no A

Bebi Leite de Magnésia, Caguei Seriamente, o Banheiro Rachou
Um dia vi uma vaca, sem rabo, vestida de uniforme
Rita Foi Comer Ontem Faltou Galinha no Espeto
HINO Brasileiro Forte e Claro
Led Zeppelin Duplamente Doido
Agnaldo Timóteo e Gal Costa
Comeram Siri Gelado Sem Problemas
Os Seus Seios Têm Pontas
Antônio Tinha Calça Grande
Suzana Sortuda Você é Tesuda
Hoje li na Cama Robinson Crusoé Francês
Minha Velha Traga Meu Jantar: Sopa, Uva e Nozes
Uma fimose é igual a um pênis mais uma pelinha
Caramba! 1000 delinqüentes Tarados Molestaram Minha Mãe!

Mel É Para os Bichas
SoPa De Feijões
Nunca Pude Assistir Suruba de Bichas
Bozo, alegria da garotada e inimigos dos trapalhões

Vampiro Voador Ataca
gostOSO e bonITO, eu fICO no ATO
Flamengo Clube Brasileiro Incompetente não Ataca
Puta Velha não Rejeita Tarado

13 de agosto de 2007

Nuvens

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As nuvens pareciam fantasmas
Os fantasmas pareciam verdades
As verdades pareciam problemas
Os problemas pareciam solidões
As solidões pareciam subterfúgios
Os subterfúgios pareciam liberdades
As liberdades pareciam tédios
Os tédios pareciam notícias
As notícias pareciam desejos
Os desejos pareciam alquimias
As alquimias pareciam amores
Os amores pareciam violências
As violências pareciam prazeres
Os prazeres pareciam mitologias
As mitologias pareciam perfumes
Os perfumes pareciam linguagens
As linguagens pareciam espetáculos
Os espetáculos pareciam viagens
As viagens pareciam desesperos
Os desesperos pareciam miragens
As miragens pareciam pânicos
Os pânicos pareciam amizades
As amizades pareciam pudores
Os pudores pareciam dúvidas
As dúvidas pareciam incêndios
Os incêndios pareciam torturas
As torturas pareciam discursos
Os discursos pareciam loucuras
As loucuras pareciam tempos
Os tempos pareciam possibilidades
As possibilidades pareciam boatos
Os boatos pareciam traduções
As traduções pareciam exibicionismos
Os exibicionismos pareciam digestões
As digestões pareciam orgulhos
Os orgulhos pareciam memórias
As memórias pareciam atrasos
Os atrasos pareciam traições
As traições pareciam isolamentos
Os isolamentos pareciam festas
As festas pareciam rancores
Os rancores pareciam músicas
As músicas pareciam retornos
Os retornos pareciam nuvens
.

Ufano


E daí se embora heróico, nosso povo não tivera suficiente braço forte para conquistar o penhor de uma igualdade qualquer? És sim Pátria amada, idolatrada! Nem tão risonho e límpido tem estado nosso formoso céu; ocultando, ás vezes, a própria imagem do Cruzeiro. Tenho-te ainda como gigante, continuas belo, forte, impávido colosso; embora para "persona non grata" teu futuro não espelhe tal grandeza. Sinto-me filho desta mãe. "Mãe terra", "mãe ar" e "mãe mar", abomino teus opressores - diretos e indiretos - pois, dentre meus irmãos, acham-se alguns ingratos desnaturados... deles, há uns que optam por ferí-la em crítica; outros, tapeá-la como se caduca fosse. Mas tua mais infame cria é aquela que não te acredita, achando que permanecerás deitada eternamente em berço esplêndido. Sempre terás mais risonhos, lindos campos do que a mais garrida terra. Declaro-me perante ti, mãe, símbolo de amor eterno. Adoro-te, mãe gentil. Permaneço fiel a ti e a teu escudo verde-louro disposto em forma de flâmula. Prova-me levantando tua clava da justiça e verás que eu, filho teu, jamais fugiria à luta. Comprova e aprova meu laço contigo, ó Pátria amada, Brasil!

10 de agosto de 2007

Magma Palavra

Eu estou em atividade
Qual meu princípio ativo
Sob signo do rubro hefesto
Sismo que me lava a explosão
Em contato com desastre natural
Piro instável em erupções efusivas
E declaro paz ao meu deus da guerra
Prometeu-me um conhecimento titânico
Escarlate tal a maior montanha do sistema
Que meu pau e o meu país são da cor de brasa
De tanto premeditar as palavras hepáticas a forjar
Acabei cinzelado com a rara doença das cinzas raras
Eu sou pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico

8 de agosto de 2007

Orientação

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Entre nostalgias tantas sapeio as saudades que ainda formigam e meu peito é aquela várzea ou éden de perene travessura cujo calor que venta no noroeste a amizade em cu permuta ainda tão próxima de mim era tudo vales sob sereno pluvial na punheta coletiva de antemão como ferrovia da minha sanidade que começava como a sombra necropolitana nos pomares de luas e insolação na pequenina paulisticidade excessivamente desconfiada pois tanto gelinho solitário é o silêncio de um povo baldio com a vida alheia de mão em mão na clarice da água fresca artesiana da terra natal do algum engenho a usina de esbagaçadas letras na sorveteria onde me refugio em memorável pracinha de aluvião levando vida daquela que me arremata na exo-boataria interiorana como o reinício da minha estrada de cavalgada na fazenda do céu de caralho por campos sob orvalho torrencial de cachoeira ou carrapato no capim sendo a senha a senda uma bússola extrema na média daquele tédio maior que o dia.

6 de agosto de 2007

Pã Americano

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Adentraram o ambiente como a um palco mítico, de revelação, esquecimento e paixão, distantes mais uma vez do resto da arquetípica fauna de que nessas ocasiões se colocam a parte. Arandelas iluminavam o quarto indiretamente, nenhum dos dois queria falar, ela tinha acabado de ligar o chuveiro e ficava andando pelo quarto ainda vestida como se desfilasse, ao som do serialismo atonal. No mesmo velho Hotel Pan-americano ele havia escrito infinitos poemas sobre a finitude, deitado sobre a mesma cama sobre a qual agora estava sentado a pensar atento ao que via e ouvia e mais que tudo como sentia (e como, ao mesmo tempo, sentia o que via e ouvia e como, também, sentia através do que via e ouvia) a arte, o amor; a arte de amar, como se ainda a primeira também fosse a última vez, em hotéis com chuveiro, cama e Stravinsky. Transcorrido o tempo do qual ele extraiu o resumo (e a escrita dele acima) do pensamento acima (do qual o escrito acima é um resumo), o espaço de encontro dos olhos dos dois foi sob os batentes da porta do banheiro... já seus ouvidos ainda hesitavam (enquanto suas cordas vocais hesitavam) a se encontrar. Ainda ele aguardava para ver o que ela viria a fazer (para só depois escrever isto aqui), pois ele (um tanto por timidez, outro por esquizofrenia) sou (eu... percebeu?) um outro.
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Distraí-me escrevendo isto ao final da música, logo após Syrinx começar a andar em minha direção lentamente, cambaleando os calcanhares em espiral sobre o carpete. Eu estava de costas, aumentando o volume do rádio, ela me tocou o ombro quando a voz do saxofone começou a pairar sobre nós como pássaro de fogo, meu coração batia de improviso em compassos mais do que improváveis; ela ficou me olhando, nua ao lado da cama, calada e ainda pingando, a toalha em turbante. Nossos olhos resvalaram furtivamente uns nos outros quando olhei para ela, que desviou o olhar para a calcinha muito sexy muito pequena muito vermelha que usamos um pouco na noite retrasada, e para a calcinha preta pequena sexy muito muito muito da véspera. Lembrava-me sem saber porquê, dos dias do meio de fevereiro, lembrava-me dela nessa época, quando sei que de fato não a conhecia, quando, embora continuássemos circularmente nos polarizando, tínhamos uma situação inversa: ela levava uma certa vantagem sobre mim, que no entanto a perseguia sem sucesso. Desde anteontem ela me rodeia e me enreda como uma pequena lua saturniana, posição que reputo como mais cômoda e que desta feita confesso preferir.
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Olhou-me então desviar o olhar negro que tinha nela para "O Arranca Corações" sobre o criado mudo, na verdade olhando o próprio móvel e não o livro, ambos mudos, nós quatro calados menos os flautins que nos sopravam o que fazer. Quando vi, ela olhava (blue noted look) daqui para lá de outro para um lado e tal e etc, procurando por algo... disse “cadê teus cigarros?”, ao que respondi sem falar, tirando o maço de um lance de sorte jamais abolirá o acaso de dentro do bolso, pondo-os sobre sua mão estendida, que fez certa questão de tocar levemente a minha. Quando, “você fuma?”, perguntei. Então “não, não”, ela disse e “não se preocupe, não vou jogá-los pela janela”; para onde se dirigiu acendendo o bastãozinho branco com dois palitos em uma tentativa. O cheiro de fósforo e tabaco que impregnaram a suíte de doce e de acre, parecia mesmo que era o cheiro da melodia que eu sentia vir de sua boca através do cigarro que fumava amparando-o como instrumento musical, soando algo entre jasmim e lilás, provavelmente o trompete.
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Levantei-me contornando a cama e fui até ela, já agora vestida, vi que olhava para a Rua Augusta bem em frente, sob fina garoa, eternamente movimentada no néon daquela hora. Ela notou minha intenção de pegar meus óculos sobre o outro criado mudo, dissuadindo-me com um beijo na boca, de gosto brutal, ao qual correspondi; ela notou minha ereção por estar ficando brutalmente excitado, a qual ela correspondeu levando minha mão pela mão para passear no seu sexo... procuraria sentir na ninfeta a ninfa, pequenos lábios sob um beijo imenso que me faria encontrar a mim mesmo ao perder os sentidos. Por baixo da saia entrei por cima da calcinha; A terceira! A última? Langerie pequenina cuja cor saberia a seguir, sexy como sempre foi. Não sei se posso dizer que comprovamos sua eficiência acessória ao ato, sua possível mas improvável necessidade em essência, algo que sai de cena para deixar algo entrar. Tudo foi muito rápido, como um fuga, em contraponto.
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A música havia cessado quando acordei, tinha muito cabelo dela em minha mão, senti-me bem lambuzado sob os lençóis, senti o peito e as costas arranhados quase como se pudesse ouví-los cicatrizar; não vi nenhuma das três calcinhas sobre o aparador, não a via mas havia algo, nunca foi diferente... vi no espelho o recado em batom lilás (talvez a cor da última peça íntima?), a caligrafia mal feita feito bom grego arcadiano, bem mau de decifrar, com as duas letras iguais da palavra “local” incidindo sobre a minha cara como curtos chifres diabólicos e, como sátira mordaz, terminava por não assinar, assassinando meu rosto refletido na página improvisada com um “risos, risos” abreviado. Encontrava-me sozinho de novo, perdido em minha companhia; hospedado na gruta do hotel ou escondido na suíte da montanha. Sentei-me sobre a cama num tombo atrás de mim, perdido ou pior, atrapalhado; acionei sem intenção o controle remoto do televisor onde o comentarista anunciava em máximo volume “el final de los Juegos Pan-americanos 2007!”. Desliguei. Olhei para a cama e foi com se tivesse uma visão dela ainda dormindo, miragem em meio ao mormaço de silêncio. Meio torta, com o quadril arrebitado e um seio e uma perna à mostra. Liguei de novo o rádio e ela acordava, espreguiçando-se exausta da minha imaginação, afagou os próprios cabelos alvoroçados e me disse “temi você como todos aqueles que necessitavam atravessar as florestas à noite, pois as trevas e a solidão da travessia os predispunham a pavores súbitos, desprovidos de qualquer causa aparente, a você atribuídos!”. Fui tomado então do mesmo pânico, num ímpeto trágico cocei as orelhas peludas e vesti o jeans sobre as pernas caprinas, saindo correndo atrás daquela que se recusa com desdém a me amar assim como sou. Atravessei apaixonado os corredores como se fossem vales, correndo como se dançasse, buscando como se caçasse ainda uma vez mais a minha ninfeta, Syrinx.
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Surpreso, alcancei-a já tão diferente, como se já se tivesse outra forma irreconhecível, tomando o seu desjejum sentada placidamente sobre a cadeira de bambu. Sentei-me de frente para ela e fiquei parado observando-a comer com delícia um tanto voluptuosa seu pedaço de pão previamente molhado na xícara, deidade intangível entregue a segurança frugal de seu disfarce de comensal, insular como o farelo boiando no chá. Incontinente em mim mesmo pergunto se “eu vou te ver de novo?”, “digo, se não me lembro não quer dizer que foi ruim”, “você, afinal, gostou?”. Ela fez de morada uma pausa demorada antes de engolir, e outra depois, para dizer me fitando de esguelha “não faço questão de lembrar de mais nada além daquilo que você esqueceu... já estamos no tempo em que as coisas já deveriam estar de volta aos seus lugares... mas essas inversões de papéis sempre são arriscadas, eu não deveria ter conseguido te alcançar, nunca!”. “Eu gostaria de entender”, disse eu a ela, que se riu divertida comigo. Falou “bebemos pouco vinho dessa vez, apesar da minha ressaca, talvez esse tenha sido o problema... como bons pagãos que somos deveríamos não nos importar, mas a natureza e o universo são o espaço do tempo... assim, deveríamos nos esquecer de novo”. E ainda continuou como se estivesse falando com outro alguém, não um simples mortal como eu, “...o resto, teu nome, endereço, telefone, desconheço... é tudo o que sei... fugindo de fugir de você, escondi-me em teus braços”. Ela se levantou com o canto da boca ainda sujo de pão, passou a mão maliciosa pela minha barbicha, encaminhando-se para a porta sem se despedir, comigo inerte no mesmo lugar parado no tempo. Quando ela se voltou para me convidar, na verdade para confirmar nosso encontro, assim “mesmo lugar, mesma hora?’, e eu, “quando? hoje? amanhã?”. Ela deu uma gargalhada e se foi sem olhar para trás, para sempre como nunca.
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Achei que poderia reencontrá-la para novos festivais de aproximação e carnaval e recusa, mas não. Eu estive daí para sempre, voltando dia a dia ao mesmo local... e reescrevo a mesma história em prosa e ao inverso; mas como voltar àquela mesma hora, se aquela hora já passou? O pânico ainda hora a hora me assola, por saber que mesmo sem lembrar jamais esquecerei de ter conseguido alcançá-la, invejoso dele, o único que a pôde reencontrar no onde e quando predeterminados circularmente, e que ao menos a pode ver e ouvir ao outra vez fugir dele; estímulo que me falta, para mim já mítico estímulo, como somente o terá ele em sua fixação de perseguidor.
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Era


O tempo da ação do tempo
Sempre leva uma eternidade
Mas já nuncamente jamais

O livro mofa
sobre o assoalho estalando
O portão enferruja
em meio à parede descascando

Ainda um dia quem sabe
Chega-se de novo a antiga idade
História juvenil da impermanência

A fruta apodrece
como o pão embolorando
A faca desfia
pelo relógio atrasando

Esquecendo a memória
A desatualizar o contemporâneo
Desempilhamos as épocas