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26 de janeiro de 2006

Uma paranóia outra para mim

Eu estava semiacordado, não tinha remelas mas tinha na boca a saliva azeda e densa de cada manhã, via-me no espelho retrovisor do carro, os cabelos brancos e a cara de sono. Era noite e a rua escura paralela à rodovia onde estacionei sob uma ponte está deserta. Construções antigas abandonadas, em ruínas, sujas e pixadas em preto e branco e azul. Sentia-me absorto em meio ao lugar, ao silêncio e à quietude, e à paralisia de que me via refém. Como não dormia há quinze dias, devo ter dormido muito; não tenho relógio, que dia é hoje e que horas são? Confusão tranqüila, vento parado, mornas variações; rápidos pensamentos que passavam por mim naquele instante... teria sonhado? Olhando ao redor não via mais nada, nenhum movimento. Até que, na esquina à esquerda, mais distante, dobraram dois homens que vinham seguindo a calçada em minha direção e fiquei a olhá-los assim, pé ante pé, caminhando na escuridão por uns minutos até ver-lhes os rostos desconhecidos, eram desconhecidos. Eles olhavam para mim. Desviei deles o olhar em um impulso de ver no espelho que olhar tinha eu, que visão de meus olhos eu lhes oferecia; no canto direito do espelho vi outro homem, vindo por traz do carro, lentamente. Nos demais espelhos, conferi que vinham mais outros, um trio. Tinham todos o mesmo caminhar impessoal e ininteligível que atônito apreendi. Surgiam outros, vários, de olhar inexpressivo, duros e severos como se tivessem um objetivo só. Fui logo tomado de uma angústia que aumentava a cada passo daquela gente vinda de todos os cantos. Eu assistia passivamente o desenrolar da cena, temeroso do que viria a seguir, mas ansioso pelo fim do suspense criado pela eminente iminência do desfecho próximo. Abalava-me tanto com meus nervos frágeis de paranóico que o carro todo pôs-se a chacoalhar, tremia junto com as ruas e as paredes no entorno, o céu em seguida, incoerente; e a insensatez do que via não correspondia à mera realidade, eu sabia. Foi só quando tudo começou a girar e girar e girar que desdenhei de meus sentidos e suspeitei do sonho, talvez da loucura. Cercado pelas pessoas paradas em volta eu nada entendia e tudo o que via eram as imagens tornando-se líquidas à medida em que se desfaziam meus nervos e minha razão. Eu estava girando em meio ao horror daquela fantástica situação, afundando perdido, vencido, à deriva nas turbulentas águas do não sentido onde me dei conta do trágico redemoinho humano que me sugava em espiral. Emoções impensáveis; passado e futuro num presente contínuo ainda passaram por mim... Era a crise, era o caos, era a descarga que acabava por submergir a merda da minha mente com aquele ruído esdrúxulo característico. Pronto! Eu estava do outro lado. Voltando à superfície na calmaria do exausto pensamento. Dispersando o medo. Dissipada a fobia de linchamento, abro os olhos recordando-me bem, agradecido àqueles gentis homens que tão bons e solidários ofereciam-se para empurrar o carro que não saía do lugar.